Pergunta: Quem é que quer?
Monge Genshô: Todos, no início. Queremos, nós. Todos vêm praticar de forma egoísta e auto-centrada, ninguém veio aqui porque quer salvar todos os seres. Não é assim. Os praticantes sempre vêm procurar alguma coisa para si, essa é a prática inicial. E por isso, toda a prática do Caminho Óctuplo está voltada para o indivíduo. Você tem que fazer o esforço correto, tem que ter um meio de vida correto, tem que ter uma fala correta. São todos você. É você, você, e você. É você que tem que trabalhar. É você que está separado dos outros. Então, o estágio de abandonar a si mesmo, seu próprio eu, é um estágio muito, muito adiantando, e nós não o encontramos nos iniciantes não, seria raríssimo.
Eu costumo explicar que há três fases: A “fase da virtude”, e que não é diferente na maioria das religiões, trabalham-se as virtudes pessoais. E elas são semelhantes no Budismo, no Cristianismo, no Islamismo, são todas semelhantes – persistência, tolerância, paciência, energia, disciplina, são todas semelhantes. O segundo estágio é o estágio de “prática do Bodhisattva”, de que você faz os votos, no final do dia. Mas quem é assim? Quem é? Já é difícil a gente ver alguém cumprir o Caminho Óctuplo! São dezesseis votos de leigo que nós fazemos, por exemplo, “nunca julgar os outros”, que eu acho um dos mais difíceis, porque está todo mundo sempre julgando. “Não se eleve”, “não procure os defeitos nos outros”. Isso é muito complicado, porque você está vivendo no mundo da dualidade, e tem que julgar.
No trabalho você tem que julgar. Os professores no Zen têm que julgar: “tal aluno pode fazer isso, tal aluno não pode… tal tem tal defeito”. Você tem que julgar, faz parte da própria vida. Aí você vai para os votos do Bodhisattva, no primeiro voto dizemos: “Os seres são inumeráveis, eu faço votos de libertá-los todos.” Está todo mundo realmente interessado em salvar todos os seres? Os criminosos, os nazistas da 2ª Guerra Mundial? Vocês vão até os infernos para dar-lhes a mão e tirá-los de lá? “Josef Mengele, venha cá, meu amigo, vou tirar você desse sofrimento infernal, vou ensinar o Dharma pra você.”
Segundo voto do Bodhisattva: “As paixões são inextinguíveis, eu faço votos de extingui-las todas”. Nós realmente estamos prontos pra extinguir cada pequena paixão que surge? Cada uma? Cada raiva, cada impaciência, cada inveja, cada ciúme, cada coisa? Cada afeto desmesurado, selecionado? Você realmente é capaz de amar todos os seres como você ama seu filho? É isso?
O terceiro voto: “Os portais do Dharma são incontáveis, a sabedoria é imensurável, mas eu faço o voto de aprendê-lo todo.” Quer dizer, eu vou aprender tudo sobre o Dharma. Tudo, tudo, tudo. Eu não vou deixar nada de fora. Vou atravessar todos os portais da sabedoria.
E o quarto e último: “O caminho de Buda é infinito, eu faço voto de percorrê-lo até o fim.” Infinito, e mesmo assim eu vou percorrer até o fim. Não acaba, e eu vou continuar, sem fim.
Quando eu estava no monastério, eu tinha a sensação assim: “Isso aqui não acaba! Não acaba nunca”. Todos os dias a mesma coisa. Levanta de manhã cedo, quatro horas da manhã. Vai para o zendô e senta e continua… sesshin de noventa dias. Isso não acaba nunca. Como eu tenho que tomar um remédio para pressão, então contei noventa dias, noventa comprimidos, botei num lugar lá, e cada vez que eu tomava um de manhã, diminuía um dia. E eu olhava aquela pilha e não acabava nunca…
Aí pensamos, o caminho de Buda, é infinito. Infinito! Então seria uma pilha sem fim, sem fim… E eu teria que tomar, na esperança de chegar a um fim que não existe. Nós fazemos isso. São os votos do Bodhisattva. Então esse é o segundo estágio do caminho, e ainda tem um “eu”. Porque sou eu que prometo. Eu vou lá no inferno, resgatar todos os seres, eu vou estudar, eu vou seguir um caminho sem fim, eu vou extinguir todas as minhas paixões que não acabam mais, que não tem fim. São paixões sem fim e vou extinguir todas elas. Você faz o segundo estágio e ainda está cheio de erros.
Aí, o terceiro estágio, da não dualidade. Extinguiu o eu, realmente. Eu e todos os seres somos um. Percebeu, sentiu, viveu a unidade completamente. Então essas perguntas “ainda tem um eu, que está olhando ou que está querendo”. Mas claro que tem, porque quem é de nós que passou todo o primeiro estágio e passou todo o segundo? Esse que eu descrevi agora, que são os votos do Bodhisattva. Ouçam os votos do Bodhisattva no final do dia. Não basta repetir “os seres são inumeráveis, faço voto de libertá-los todos.” Só repetir não é nada. Você tem que pensar o que significa esse voto. Porque são votos paradoxais, uma vez que eles, por sua própria natureza, são impossíveis, e não se faz votos impossíveis. Esse é o voto do Bodhisattva – fazer votos impossíveis.
Então, como pergunta retórica, essas questões sobre “quem é esse eu que está fazendo isso”, têm sentido, realmente. Mas como pergunta na prática diária do praticante, vamos reconhecer, nós somos “eus” muito bem construídos e sólidos. Se a gente for bem honesto, basta perguntar: quem importa mais para você, seu filho ou uma criança que está passando fome lá na África? Não me responda que você se importa muito com as crianças que estão lá na África, porque você dá comida só para o seu filho. A criança lá na África está passando fome e você só pergunta: “mas por quê que eles fizeram tantos filhos”? Não é? É o que você pergunta. Não é assim?