Praticante: Sensei, identifiquei em mim uma vontade de fugir de certas coisas naturais da vida. Uma crença que permeia tudo que faço de que, de alguma maneira, eu possa vir a escapar. Ao perceber que de certa forma não há como escapar, não há para onde ir, nem vir, sinto como se o chão tivesse sido tirado debaixo de meus pés. Analisando mais a fundo, creio que a raiz disso seja algum tipo de negação da vida ou, talvez, um desejo de não-existência. Como posso identificar a origem desses sentimentos e como posso lidar com eles?
Kōmyō Sensei: Essa é uma pergunta delicada. O praticante ou a praticante não esclareceu aqui se essas sensações surgiram em função da prática de zazen ou são coisas que surgiram a ela. É… por outras questões, eu relembro àqueles que já vêm aqui participar e praticar neste meu horário: a prática de zazen nem sempre é para todos. Ainda que o ensinamento de Buddha e a própria prática contemplativa tenha como função levar a nossa mente a um estado de saúde perceptiva e clareza pura dos aspectos não-saudáveis, mesmo assim, é necessária uma base para que nós possamos lidar com certas experiências e até certos ensinamentos.
Em relação à pergunta específica, a pessoa em questão precisa analisar bem se a base dessa sensação tem um fundo psicoemocional e, nesse caso, a psicoterapia é extremamente importante. Isso porque o ensinamento Zen e o Dharma de Buddha não são uma negação da existência e nem pretendem criar a ideia de não-existir. Muito ao contrário. Por mais estranho que possa parecer para algumas pessoas, justamente por ensinar o Vazio, a Impermanência e o Não-Eu, o Buddha procura mostrar como a vida é maravilhosa. Como vale a pena usufruir da vida no momento presente e não se perder no passado ou fugir para o futuro. Como a vida aqui e agora é um tesouro. E existe mais de um Sutra de Buddha em que ele fala sobre isso. Existe um Sutra muito interessante, muito bonito. Ele se chama Sutra da Cavilha. ‘Cavilha’, nesse caso, é uma peça de carroças antigas, que eram duas madeiras com uma parte aberta no meio – uma espécie de buraco. As madeiras se fechavam com a abertura do buraco permitindo a cabeça de um burro, cavalo ou boi passar e assim dar mais força ao cavalo para puxar a carroça. Distribuir mais a força e não forçar demais a musculatura do cavalo. E o Buddha diz “Imaginem uma cavilha flutuando num oceano e imaginem uma tartaruga cega saindo das profundezas para respirar ar no vasto oceano. E, quando essa tartaruga sai na superfície da água, ela consegue acertar direto no orifício da cavilha”. E ele pergunta aos monges “Monges, quais são as chances de uma coisa dessa acontecer? Que, em um oceano infinito, a tartaruga cega consegue sair com a cabeça na superfície da água acertando exatamente o orifício da cavilha?”.
E os monges respondem que é uma possibilidade muito pequena. E aí o Buddha argumenta “Essa, monges, corresponde a probabilidade, a chance de nós nascermos e existirmos como seres humanos” e, então, ele começa a falar sobre a maravilha e a dádiva que é nascer como um ser humano. Nós, animais humanos, possuímos uma sofisticação de percepção que nem mesmo os animais mais inteligentes conseguem superar. Então ele fala sobre a sorte, a maravilha de se viver, de estar aqui agora nesse momento.
E ele diz “Monges, nós devemos usufruir disso profundamente, porque isso é um tesouro”. Não há discurso do Buddha em que se declare a pretensão de levar ninguém a sentir que a vida é nula.
Não, não há nem aonde ir, nem para onde voltar, porque você já está aqui. Você já está onde você deveria estar. Não é que lhe falta uma direção, você já está no ponto – esse é o ponto – e isso é a grande maravilha. Então você precisa compreender primeiro qual a natureza desses pensamentos que lhe faz sentir essas impressões de que não há para onde escapar.
Não parece uma ideia claustrofóbica? Não é uma ideia repressora? Por favor, entenda: você não precisa escapar. Porque você já está livre, você não precisa ir ou vir: você já está e essa é a maravilha do Dharma e do ensinamento de Buddha.
A vida é maravilhosa. Eu sei que existem dificuldades, que existem os obstáculos, os problemas. Existem desafios às vezes muito difíceis. Eu passei por um e ainda assim, graças a minha prática de tanto tempo, eu soube a cada momento das minhas dificuldades, da tristeza de ver minha filha extremamente doente a cada momento. Eu sabia aqui e agora que a vida é maravilhosa. O fato de estar sofrendo e estar triste pela minha filha, chorando por ela, não significa que eu tenha que perder a minha capacidade de viver no agora.
Teishō proferido por Kōmyō Sensei em janeiro de 2023.