Pergunta: Por que surgem tantas coisas na mente? Por que é tão difícil fazer frutificar bons pensamentos?
Monge Genshô: Muito conforto não funciona bem, mas doença atinge a mente, porque quando você está doente a sua mente também adoece junto. Por isso nós temos que cuidar do corpo também, ele é precioso e temos que ser saudáveis.
A humanidade progrediu economicamente, em termos morais, em ética e na verdade o movimento é para melhor, só que nós estamos muito perto de muitos horrores, então não conseguimos enxergar a melhora. Precisamos de um distanciamento histórico para conseguir enxergar. Quando vamos para um país que está melhor que o nosso, sentimos um verdadeiro choque. Eu já trabalhei na Europa, já fiquei em monastério nos Estados Unidos e estive no Japão este ano. O Japão é um choque para nós, porque o simples fato de você estar numa sociedade que não considera insegurança como fator muda tudo. A sociedade fica mais rica. O Japão foi muito influenciado pelo budismo, isso está dentro da arte, dentro de tudo. Quando você pega uma cidade antiga como Kyoto, que tem dois ou três templos por quarteirão, vê isso claramente. O budismo está muito presente na cultura, então ninguém estranha que todas as pessoas sejam chamadas a limpar como nós fazemos aqui no samu. Todos lá fazem isso e foram ensinados nas escolas a fazer também. Nos hospitais os médicos também limpam, as pessoas não ficam paradas, não dizem “esse trabalho é meu e aquele outro não é digno”, não existe a noção de que lixo é um problema da prefeitura, as pessoas é que recolhem seus próprios lixos. No monastério em que nós estávamos, nós incinerávamos nosso próprio lixo. A prefeitura só buscava aquilo que era reciclado.
Há uma palavra muito utilizada no Japão que é motainai, que significa desperdício. Desperdício é algo muito feio. Temos que fazer como fazemos com o oryoki, não pode sobrar nem um grão de arroz. Todo mundo tem que comer tudo porque não se concebe a ideia de que algo vá sobrar. Então você se serve menos, não é uma cultura de abundância, é uma cultura de poupar, de se manter restrito com relação ao que faz, de manter tudo imaculadamente limpo, de todos poderem confiar no resto da sociedade e o resultado é que não existem muros, não existem câmeras de segurança e eu nunca vi a polícia. A nação gasta muito pouco nisso, basta nós vermos as estatísticas, são 130 milhões de habitantes. No Brasil nós temos por volta de 160 assassinatos por dia. No Japão tem por volta de meia dúzia por ano. Teve um ano que eles tiveram 4 assassinatos, no país inteiro, em um ano. Aqui nós contamos o número de outra forma. São 160 por dia. Eles estão vivendo num outro planeta comportamental.
Não estou dizendo que nós não vejamos defeitos na sociedade japonesa. Os defeitos também existem, a pressão social é muito grande, as pessoas se sentem muito cobradas para serem perfeitas e por isso existe um índice de suicídio significativo, não é o maior do mundo, os maiores estão em países do leste europeu, Hungria, Estônia, Rússia e Escandinávia, o Japão está em oitavo lugar, senão me engano. Brasileiro não se mata facilmente, nem quando está morrendo de vergonha. No Japão é diferente, é uma sociedade da vergonha. Passar vergonha lá é muito feio, então essas pessoas se esforçam muito porque existe uma pressão imensa que faz com que o comportamento social seja muito diferente do nosso.
Seria bom misturar algumas qualidades brasileiras, como calorosidade e relaxamento, com algumas qualidades japonesas. De certa maneira é isso que nós temos aqui, no nosso sesshin. Os comportamentos com relação ao horário, às regras, etc., tudo isso é japonês. Nós somos individualistas demais e isso é bem europeu, americano, sul-americano, nós achamos que o indivíduo é muito importante, mas no Japão não é assim. Lá quem é mais antigo na organização budista, por exemplo, tem autoridade sobre quem é mais novo. Ela entrou dois dias depois de mim no monastério então eu sou senpai e ela é kohai. Eu, toda vida, vou ser superior dela. Se ela estiver fazendo algo errado eu posso corrigi-la e o que ela responde é “hai”, que significa: “sim, obrigado”. Normalmente você diz: “obrigado por se importar comigo”, por gastar seu tempo me ajudando. Essa é uma atitude que ajuda muito no monastério, porque você está sempre nessa posição, sempre tem um grupo de pessoas que é mais antigo que você e estão te ajudando, mas tem também aquelas pessoas que entraram depois de você que são seus kohais e você tem obrigação de chamar a atenção por tudo que fizerem de errado. Não é que eles não tenham orgulho, mas as regras são estas. Então nós também temos que trabalhar isso dentro de nós, por que eu não gosto de ser corrigido? Porque sou vaidoso, orgulhoso, pretensioso, por isso. Se eu fosse humilde eu aceitaria a correção do mais antigo e isso sim seria a prática correta.