Quando monge noviço no templo Zuioji, em Niihama, Japão, o brasileiro Francisco Handa tinha a tarefa de cuidar diariamente de um jardim zen, um jardim de areia e pedras usado pelos monges para meditação. Ninguém pisava no jardim, a não ser os noviços na hora da limpeza. Ao seu redor, havia uma varanda com salas reservadas de onde os monges contemplavam a paisagem como na maioria dos jardins zen, aliás. Ao contrário da maioria dos trabalhos monásticos, para aprender a cuidar de um jardim zen não havia mestre. Então, como transformar um monte de pedras e areia numa paisagem que acalmasse os olhos e a mente? Vou fazer e você copia, era tudo o que dizia o monge já familiarizado com a tarefa. Então ele dava forma à areia. Com olhar atento, o noviço repetia o feito. Tínhamos que pegar um rastelo e andar fazendo um traço retinho. Se não ficasse bom, o jeito era repetir.Mas ninguém falava onde estava o erro, diz Handa, hoje na Comunidade Budista Soto Zenshu, em São Paulo. Perceber onde faltava harmonia fazia parte do aprendizado.
A única dica era seguir os contornos naturais do jardim. Assim, os desenhos começavam retos, acompanhando as margens, e só perdiam essa forma quando contornavam as pedras. A reta simboliza o pensamento correto, um caminho a ser seguido. …………. Embora seja chamado de jardim, o retângulo de areia e pedras representa o mundo. A areia e os pedriscos representam o mar. As pedras são rochas e ilhas. Portanto, os círculos ao redor das pedras seriam como ondas, que batem na rocha e voltam, batem e voltam, no mesmo movimento contínuo, cheio de altos e baixos, que é a vida. Entender e visualizar essa dinâmica de forças é essencial para conseguir a harmonia necessária para a contemplação.
Contemplação
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Paisagens com poucos elementos e cores confortam a mente. Diante de tão pouca informação, o pensamento pára de saltar de um assunto para o outro, como ocorre no dia-a-dia. O equilíbrio visual é o que permite nos concentrarmos. Por essa razão o kazansui está tão ligado à meditação, que nada mais é que a atenção total no momento presente. Assim como no zazen (meditar sentado) é preciso concentrar-se na respiração, na meditação sobre o jardim o foco está na paisagem. É meditar com os olhos. Ou simplesmente contemplar.
Impermanência
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Tem que ser devagar, não pode ter ansiedade. Relaxe, preste atenção na respiração e concentre-se totalmente na atividade.
Lembro-me então de quando perguntei ao monge Francisco Handa se arrumar um jardim zen era também um momento de meditação. Com simplicidade, ele me respondeu que não havia diferença entre lavar um banheiro e fazer um jardim. Tudo que se faz num templo é meditação. A mestra Sinceridade já terminava a segunda reta quando me detive no som quase uniforme dos pedriscos sendo puxados pelo rastelo. Sinal de uma velocidade constante que resulta em traços retos, penso eu.
Tento usar a tática na minha vez. Não funciona muito. Comento com a mestra. É preciso treinamento, diz. Tolerância é um dos três ensinamentos do budismo trabalhados na manutenção do jardim zen. Não é fácil. Às vezes, é preciso assumir que não deu certo e tentar de novo, sucessivas vezes, até alcançar um resultado harmônico. Uma harmonia não só visual, e sim da energia representada ali (o mar, as ilhas, lembra?).
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Não bastasse tudo isso, aquele punhado de areia e pedras ensina ainda que nada é permanente, tudo é dinâmico, pois a cada vez que bate um vento ou se passa o rastelo o jardim é outro. Foi o que aprendi no mosteiro quando, absorta com o rastelo, me detenho ao perceber que vou atropelar o desenho que a Mestra acabara de fazer. Ela me olha e sorri. Passe por cima.Um faz, o outro desmancha e refaz. O jardim zen está sempre sendo construído.
Extratos do texto:
Cortesia de Michel Seikan
Fonte: Vida Simples