Os meios hábeis

Os meios hábeis

P: Uma coisa que esse discurso budista sempre procura esclarecer (pelo menos nas experiências que já tive) é o não-julgamento de tais religiões, embora esteja implícito um certo julgamento de valor, evolução ou escala gradativa. Lembro de uma situação em que me disseram algo como: “Não julgamos tais práticas. Apenas seguimos o caminho do Buda e servimos de exemplo que eles possam tomar como referência”. Essa ideia de “servir de exemplo” não carrega consigo certa lógica de superioridade? Ainda que somente no plano soteriológico, doutrinário e, até, metafísico…?

R: (Do Prof.Dr. Monge Ricardo Mário Gonçalves)

Muito pertinente seu questionamento sobre preconceito, que vou tentar responder.

Existe, no Budismo Mahayana uma chamada “Filosofia da Assimilação” pela qual lidamos com as divindades das demais religiões. Essa filosofia repousa sobre dois pilares:

1.O conceito de “hábeis meios salvíficos (sanscrito “upaya”; japonês “hôben”).

2.Os conceitos de “essência e manifestações” (japonês “Honji-Suijaku).

Segundo o conceito de “hábeis meios salvíficos”, os Budas e Bodhisattvas, em sua infinita Compaixão, assumem inúmeras formas e emitem discurso em vários níveis, adequando-se à índole e às características dos diferentes seres viventes para intruí-los e conduzí-los à Iluminação. Aplicando esse conceito “lato sensu”, praticamente todas as religiões seriam “hábeis meios salvíficos”, do ponto de vista budista, convergindo para o mesmo.

A teoria do “Honji Suijaku” que foi usada no Japão medieval para harmonizar o xintoísmo com o Budismo, diz que uma divindade cuja essência (Honji) é budista, faz emanar de si múltiplas manifestações (suijaku) que correspondem aos deuses nacionais dos diferentes povos, para conduzir esses povos ao Dharma. Para dar um exemplo, o mestre do Shinshû Zonkaku (século XIV)aplicou essa teoria ao Budismo Shin: aproveitando o fato do Buda Amida apresentar características “solares” – Shinran se referia a ele como “Sol da Sabedoria”, interpretou a deusa solar do xintoísmo Amaterasu como uma emanação -suijaku – de Amida – honji.

Nada nos impede de aplicar essa filosofia aos Orixás e outras divindades do panteão afro-brasileiro, vendo nelas emanações dos Budas e Bodhisattvas.

Existe, porém, um único ponto em que o Budismo expressaria uma nítida reserva em relação aos cultos afro: trata-se do sacríficio sangrento de animais. A mesma reserva tinha o próprio Buda em relação aos sacrifícios adotados por alguns cultos hindus, como lemos nos Sutras. Em seu relacionamento com religiões étnicas, o Budismo sempre aconselhou a substituição de sacrifícios sangrentos por oferendas incruentas como lamparinas, flores, água, incenso, etc.

As religiões monoteístas procuraram eliminar os deuses das religiões étnicas, demonizando-os ou rotulando-os de falsos deuses. O Budismo, pelo contrário, absorveu-os, dando uma interpretação budista aos mesmos.

Concluindo, verificamos que o Budismo lida com as religiões étnicas não de um ponto de vista evolucionista, mas sim do ponto de vista oposto, ou seja, um emanacionismo. Usando uma metáfora taoísta muito empregada no Japão, Budas e Bodhisattvas “atenuam seu brilho” para “misturar-se à poeira” das divindades étnicas.

Gasshô,

Shaku Riman (nome monástico Shin do Prof)

(copiado de uma brilhante resposta do Prof em uma lista Shin)