Notas sobre o Sutra Kalama
Artigo de Mauricio Hondaku Sensei do Jodo Shinshu Brasil
O dito “Kalama Sutra” realmente está contido no Anguttara Nikaya (3/65) e é o mais distorcido dos sutras sem dúvida. Esse sutra é erroneamente usado pelos que se rebelam contra o status quo da relação mestre-discípulo para justificar que não é necessário um mestre para que se possa trilhar a senda budista.
Quem diz isso simplesmente é um papagaio e nunca parou e leu a versão original do sutra e se baseia em um monte de bobagens que lê na internet e se acha o máximo por isso. Em nenhuma parte do Kalama Sutra contido no Anguttara (que sem dúvida é a mais antiga e confiável fonte para tal) diz qualquer coisa parecida com o que está acima e com o que o pessoal rebelde costuma usar como “resumo”. Eu só tenho a versão do AN em inglês, então por isso deixe-me dar o contexto do sutra e depois uma rápida visão do que tem nele.
Na verdade o que está escrito lá é o seguinte:
“Então, nós dizemos, Kalamas, o que foi dito assim, ‘Venham Kalamas. Não vão por aquilo que tenha sido adquirido por repetição oral; nem por tradição, nem por boatos; nem pelo que está nas escrituras; nem por conjecturas, nem por suposições; nem pelo raciocínio enganoso, nem pela parcialidade que impede a consideração objetiva de um problema ou situação; nem pelas aparentes habilidades de outrem, nem por considerações, [como] ‘O bramane é o nosso professor’. Kalamas, quando vocês sabem por vós mesmos: Estas coisas são más, estas coisas são condenáveis; estas coisas são censuradas pelos sábios; aceites e praticadas, que estas coisas conduzem ao prejuízo e à maldade, ‘abandonem-nas.”
O mais importante na passagem acima é a seguinte frase: “O bramane é o nosso professor’.’ Isso coloca todo o resto da citação que o povo adora usar, ao contrário.
Por que? Porque no início do Sutra é explicado o contexto. Quando Buda chega a Kesaputta, cidade onde residiam os Kalamas, um grupo vem ter com ele e o diálogo se inicia assim:
“Há alguns monges e brâmanes, Venerável Senhor, que visitam Kesaputta. Eles expõem e explicam apenas as suas próprias doutrinas, desprezam as doutrinas dos outros, insultam, e criticam severamente. Alguns outros monges e brâmanes, também, Venerável Senhor, vêem a Kesaputta. Venerável Senhor, há dúvida, há incerteza em nós, com respeito a eles. Quais destes, reverendos monges e brâmanes, dizem a verdade e quais dizem mentira? ”
Ou seja, eles vem tirar uma dúvida com Buda, dizendo que um grupo de ASCETAS (Bramanes) haviam estado na cidade para pregar e estes denegriram os ensinamentos do Buda-Dharma e fazem isso mais para frente, dizendo que eram donos da verdade porque estava escrito nas escrituras brahmanes há séculos e que eles vinham de uma longa linhagem de mestres ascetas, logo tinham que ter credito no que falavam. Ora, o Buda não tinha nada escrito até então e também não vinha de uma linhagem de mestres.
Então, ele diz aos Kalamas o que citei acima: “Não acreditem só porque está escrito, bla bla bla”…. ou seja, ele dizia “Acredite em mim que eu sei por experiência o que estou pregando”, ou seja, ele estava, dizendo tudo isso, como uma crítica atroz contra os ascetas que o denegriam e não que isso fosse aplicável a ele. É certo que no Sutra do Paranirvana, ele disse que tínhamos que testar o que ele havia ensinado, mas nada tem a ver com o fato de que devemos nos largar a mercê de nossos pensamentos para chegar em algum lugar. O Kalama é muito enfático: trata-se de uma critica direta aos que duvidavam dos ensimentos do Buda e não um tratado de rebeldia contra professores.
Tanto que o sutra termina desse jeito (e ninguém coloca essa parte nos “resumo”):
“Maravilhoso, Venerável Senhor! Maravilhoso, Venerável Senhor! Como se, Venerável Senhor, uma pessoa virar para cima o que está de cabeça para baixo, ou destapasse o que está oculto, ou apontasse o caminho para o que anda perdido ou apontassem uma lâmpada na escuridão, pensando, “Quem tem olhos verá objetos visíveis ‘, assim tem o Dharma sido exposto em muitos aspectos pelo Abençoado. Nós, Venerável Senhor, vamos até ao Abençoado por refúgio, ao Dhamma por refúgio e à Comunidade de Bhikkhus por refúgio. Venerável Senhor, que o Abençoado nos conte, a partir de hoje, como discípulos leigos que foram por refúgio para a vida..”
Logo, no final do papo os Kalamas tomam refúgio no Buda, no Dharma e no Sangha… por que fariam isso se tivessem entendido que tinham que seguir por si próprios?
Volto ao que falo sobre os sutras, devemos sempre lê-los e entender seus contextos, tanto doutrinários, mas também geográficos e sociais.
nota do autor: esse texto pode ser livremente compartilhado desde que os devidos créditos sejam prestados.