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Seria interessante ler um livro como “O Jogador”, de Dostoiévski. Ele fala extensamente sobre o pensamento, sobre a mente do jogador, e o fato é que ele também era viciado em jogo. Os exemplos não parariam, vamos encontrar mil exemplos semelhantes em que sempre retornamos ao mesmo tipo de ato, ao mesmo tipo de marca. Escolhemos então aquilo que aparentemente nos agrada, aquilo que fixamos com nossa energia de hábito, e isso nos levou para lá. Surge então esse gosto/não gosto. Perdemos a liberdade quando dizemos gosto ou não gosto. Isso é muito examinado no Zen. Um dito famoso de um mestre Zen diz: “A vida é fácil para quem não tem preferências”. Mas, se você tem preferências, então é complicado.
Eu me lembro de um aluno que se apresentou no Zen, e eu sentei à sua frente em uma refeição informal da sangha. Ele colocou apenas feijão no prato, e eu perguntei: “Você não come arroz, salada e as outras coisas que estão lá?” Ele respondeu: “Não, eu como só o feijão, eu não gosto de arroz”. Uma coisa muito rara, na realidade, alguém dizer que não gosta de arroz, que é um alimento sem características muito fortes e que se adapta a praticamente tudo, e talvez o mais consumido em toda a Terra. Então, quando as refeições de Sesshin começaram, eu disse a ele que ele tinha que fazer um prato com tudo o que estava na mesa, tudo que estava sendo oferecido. Poderia variar as quantidades, mas ele tinha que comer tudo, de tudo. Porque esse é o treinamento do próprio Zen. Você tem que abdicar dessa posição de gosto/não gosto, porque essa posição é extremamente ligada ao ego, à questão de se sentir diferente, de se sentir uma pessoa separada, governada por suas próprias marcas cármicas. Então, em vez de fazer isso, devemos provar de tudo, mas não nos prendermos a nada.
Perdemos a liberdade completamente quando, por exemplo, usamos drogas. Porque a verdade é que as drogas provocam boas sensações. Se elas não provocassem uma experiência imediata muito prazerosa, as pessoas não voltariam logo para as drogas. Mas, se você sentir uma sensação muito prazerosa, um derrame de dopamina no seu cérebro, um grande prazer… Eu me lembro de uma moça que narrou que fumou crack e aí ela disse: “Como pude viver sem isso?!”. Então, ela tinha que fumar de novo e de novo e de novo até o momento em que essas sensações se tornam cada vez mais fracas porque o cérebro não tem dopamina nova para derramar. Aumentam-se as doses, e a pessoa se torna extremamente prisioneira da droga ao ponto de mais nada importar, absolutamente nada, e a pessoa perde a sua vida, transformando-se em uma mente obscura como a de um animal.
A orientação no Zen sempre foi: nenhuma substância que altera a consciência é para o praticante. Se você quer praticar o Zen, não pode entrar neste tipo de ligação porque ela vai obscurecer sua mente, aprisioná-lo, mas ela está profundamente ligada a essa questão da escolha, de Vedanā. As drogas mostram que, quando nós fazemos qualquer escolha, vamos abdicando de nossa liberdade. A liberdade implica em você não fazer escolhas definitivas. É por isso também que insisto com os praticantes: não façam coisas definitivas porque elas lhes retiram sua liberdade. Então, essa perda da liberdade está além da perda da percepção em si, da realidade objetiva. Você vê a realidade, mas faz uma escolha orientado por sua marca cármica, e à medida que faz uma escolha, perde a realidade tal como ela se apresentava e cria uma outra realidade, que é a realidade daquele que está prisioneiro.
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Palestra proferida por Genshō Sensei em teishō na Daissen Virtual no primeiro semestre de 2024.