O reino da impunidade

O reino da impunidade

“Caríssimos Irmãos no Dharma,
Sinto ter chegado o momento propício para interferir na discussão agora em curso sobre delitos e penas. Quero contribuir para a mesma com algumas reflexões.
1.Achei, no mínimo, muito engraçado alguém invocar o princípio do karma para advogar o abrandamento, ou simplesmente, uma supressão das penas. Quero invocar aqui um pensador conservador cristão de linha esotérico-gnóstica que eu respeito muito, Joseph de Maistre (1753-1821) que diz, em algum lugar,
que quando uma sociedade renuncia ao dever de punir seus criminosos, o peso da culpa dos mesmos passa a recair sobre essa dita sociedade, como um todo.
É exatamente isto que estamos vendo acontecer em nosso país, onde se instalou o reino da impunidade.
Não tenho a mínima competência para opinar em questões jurídico-penais, mas talvez possa oferecer um modesto contributo discutindo princípios gerais:
1.1.Pena de morte: aos que defendem a aplicação da pena de morte invocando um pretenso poder dissuasório da mesma, quero lembrar a cena de abertura do livro Surveiller et Punir (Vigiar e Punir) de Michel Foucault, um dos mais importantes filósofos do século XX. Numa praça de Paris, em meados do século
XVIII, está sendo executado através de torturas horripilantes um pobre diabo que ousou atentar contra a vida de Luís XV. Enquanto a multidão Assistia o bárbaro espetáculo, os punguistas circulavam alegremente pela praça, aliviando os espectadores do peso de suas carteiras. Ou seja, a pena de morte não inibia ninguém. O que inibe não é a pena de morte, mas sim, como nos ensina o filósofo legista chinês Han Fei-tse (280-233 a.C.), a absoluta certeza de que todo e qualquer delito será punido.
1.2.Rigor e Misericórdia: Como deverá ser uma punição? Quero aqui tomar de empréstimo à Santa Kabbalah ou Tradição Secreta de Israel (como dizia Fernando Pessoa) os conceitos-chave de Rigor e Misericórdia. Uma pena terá de apresentar um justo equilíbrio entre essas duas colunas, ou seja, ser suficientemente rigorosa para o delinquente tomar consciência do mal que fez e se sentir punido por causa do mesmo, e misericordiosa no sentido de ajudar o criminoso a se regenerar e trabalhar por sua reinserção na sociedade. Como
conseguir isso na prática? Que alguém mais competente que eu nessas questões apresente suas opiniões e sugestões.
2.O conceito de karma, para ser utilizado hoje, precisa ser desmitologizado, isto é, aliviado do peso inútil de seu “entulho mitológico”. Karma significa, basicamente, o conjunto das ações, palavras e pensamentos humanos mais suas consequências. Em termos modernos, isso seria historicidade. O homem é ao mesmo tempo produto de uma história e agente a colaborar na construção da mesma. A historicidade nos mostra que todos somos, de alguma forma, corresponsáveis (ainda que não necessárimanete culpados) por todo o
mal que ocorre na sociedade. Propor algo como a supressão das penas em nome do karma seria como tentar fugir ao dever de participar na obra coletiva de construção do devir histórico. É exatamente punindo os criminosos que se participa da obra do karma, e não fugindo a esse dever.
3.Foi lembrado, com muita propriedade, durante a discussão, que, quando, por ocasião de um críme bárbaro, clamamos pelo agravamento das penas, está em ação o sentimento de vingança. O ciclo sinistro das vinganças sucessivas (vendetta) foi a mais antiga lei das sociedades humanas e seus resquícios ainda não desapareceram totalmente… O que é a prática americana de se convidar os familiares da vítima para assistir a execução do criminoso senão uma sobrevivência da vendetta? Entre os samurais do Japão pré-moderno a vendetta, sob a denominação de kataki-uchi, era uma prática institucionalizada e regulamentada. Sobrevivências da vendetta também estão presentes na sharia, a lei islâmica.
A Lei Escrita e as instituições jurídicas surgiram para, entre outras coisas, fazer cessar o ciclo sangrento das vinganças sucessivas, ficando a tarefa de punir os crimes a cargo de uma instância superior a agressores e
agredidos. O antropólogo Pierre Clastres mostra-nos como, em casos extremos, o ciclo de vinganças pode se exacerbar a tal ponto que culmina pela destruição do grupo social.
4.No Budismo é pregado um caminho para a superação da vendetta:
Porque neste mundo, ódios jamais cessam pelo ódio,
Mas eles só cessam pelo não-ódio;
Isto é um antigo princípio natural. (Dhammapada I, 5.)
………

Gasshô,
Shaku Riman

Prof . Ricardo Mario Gonçalves” (2004)