Na crença mais predominante em todo o mundo, enfatiza-se o eu e a continuidade do eu.
Santo Agostinho, por exemplo, especula sobre como os corpos seriam ressuscitados no
Juízo Final. O que aconteceria com os corpos dos que foram queimados e suas cinzas
espalhadas? O que aconteceria com aqueles que tivessem sido comidos por canibais?
Como aquele corpo ressuscitaria no fim dos tempos – porque o credo fala em
ressurreição para o Juízo Final de todos os mortos? A ideia é preservar o corpo,
ressuscitá-lo, fazê-lo nascer, manifestar-se novamente, para então haver um julgamento,
separar os premiados com o paraíso dos condenados aos infernos. Esse seria o final da
história da Terra. A ideia central é preservar o “eu mesmo”, dar-me novamente o corpo,
na plenitude da sua saúde e vigor, preservar o eu, a identidade.
A concepção budista é completamente diversa, já que vê o eu como um fenômeno
proveniente de nosso próprio funcionamento, da nossa operação mental, necessário,
essencial para transitarmos pelo mundo – o que não estamos tentando aniquilar, mas sim
estamos tentando compreender corretamente e ver a sua qualidade ilusória, a sua
impermanência e transitoriedade a cada instante.
Em lugar de querer fazer ressurgir cada indivíduo, a ideia budista é os fazermos acordar
do sonho da existência individual e perceber nossa verdadeira natureza integrada a todo
o universo, e nos conceber como uma onda perpassando pelo universo. A essa onda de
energia chamamos karma: essa onda que influencia outras ondas, que continua
perpassando manifestando existências. A chamamos karma, mas não damos a ela uma
identidade como se fosse um algo separado. Assim como não dizemos que as ondas do
mar são entidades separadas do mar, mas as vemos como movimento no mar, como
impulso se propagando no mar. É assim que vemos as ondas, e é assim que devemos
enxergar a nós mesmos. Nosso karma movimenta o universo e nos manifesta. O karma
não é uma entidade que carrega “eus”, mas sim o karma que manifesta seres. Nossos
movimentos ilusórios geram identidades, fazem ondas, que então são aparentes, que
nascem e quebram, que têm uma existência temporária. Elas são o próprio Universo, não
são separadas dele. As ondas são água, são impulsos se manifestando, mas são
essencialmente o mar, nada mais que o mar. Nada mais do que o grande oceano.
No oceano universal nós somos manifestações. Não precisamos acreditar no karma
porque apenas o verificamos, o vemos, nós existimos, não precisamos acreditar que
temos impulsos, que somos movimento no Universo. Simplesmente somos. Tentamos
compreender isso, tentamos entender nossa verdadeira natureza de sermos universo.
Todas as coisas são vazias de um eu porque as ondas não são mais do que “eus”
temporários. Mesmo que dêmos um nome a uma onda, ela surge e desaparece, integra-
se ao oceano sem perda alguma. E se existe energia, uma nova manifestação surgirá. É
só isto.
Então o karma – o movimento que geramos no universo – gera nossas identidades, não
são nossas identidades que carregam karma.
Assim, o karma não é objeto de nenhuma fé, mas apenas de verificação. Estamos vendo
acontecimentos, e, portanto, eles são fruto de causas anteriores. Karma não passa de
causas e efeitos, causas e consequências. Sucedendo todo o tempo. A palavra karma
significa ação. Nós somos produtos dessas ações e nossa iluminação é conseguirmos
nos ver como parte do oceano. E, apesar de termos uma manifestação temporária,
devemos enxergar nossa verdadeira natureza. E é isso que quer dizer kenshō. “Ken” quer
dizer enxergar, e “shō”, verdadeira natureza.
Teishô Matinal proferido por Meihô Genshô Sensei, maio de 2021.