«O que fazer com este barco que chamamos de Buddhismo?» Parte 2

«O que fazer com este barco que chamamos de Buddhismo?» Parte 2

Continuação do artigo de Henrique Pires:
>>Parte 3: as maneiras corretas de lidar com o barco
Falamos de enganos que, muito naturalmente, acontecem em todas as épocas e lugares. Mas agora poderíamos finalizar questionando: “Quais, então, seriam as maneiras mais apropriadas de se relacionar com o barco (da tradição buddhista)?”
1) «Começar com o que for possível, mas começar»
Individualmente, reconhecemos que o método serve para um propósito, que ele não é o fim em si mesmo. Precisamos colocar o barco na água. E em algum momento, precisamos colocar as mãos na massa: corrigir nossas falhas, cultivar virtudes, domar a mente.
2) «Aceitar ajuda, dispor-se a aprender»
Individualmente, reconhecemos que não há como avançar sem método, sem forma, sem orientação, sem aprender com alguém. Abandonamos a arrogância de achar que nós nos bastamos como se já fôssemos iluminados. Temos humildade para aprender com outros.
3) «Navegar com desvelo e não com aferramento»
Individualmente, percebemos que haverá um momento para ir diminuindo nosso apego ao veículo, ao método, especialmente depois que já tivermos aprendido a navegar com ele. Quanto mais nos aproximamos do objetivo final, mais devemos estar preparados para não nos fixar demasiado no veículo (um cuidado, porém: ainda não é hora de pular fora!).
4) «Não parar no meio do caminho»
Individualmente, cuidamos para não confundir pequenas etapas com a realização última (a extinção completa da ira, cobiça e ignorância). Ou seja, celebramos os pequenos avanços sem neles estacionar para sempre. É preciso seguir adiante. Seguir sem deixar que o comodismo, os títulos, ou nossos pequenos feitos nos retenham no meio do caminho.
5) «Pensar no longo prazo, e pensar coletivamente»
Este último é uma percepção coletiva. A pessoa realizou o que poderia realizar com aquele método, ela está pronta para desapegar-se dele. Não vai ostentá-lo carregando-o às costas. Ela atravessou e está livre agora na outra margem. No entanto, ela pensa: “Esse barco me foi útil e sem ele eu não poderia completar tão dura travessia. E se, agora, eu o oferecesse aos outros companheiros necessitados? E se, agora, eu os instruísse a respeito do correto uso do barco”. E assim pensando ela preserva o barco, para que os demais companheiros que a estão vendo também preservem seus barcos; e assim fazendo ela oferece o barco aos que ainda não possuem, bradando: “Amigos, esse barco é bom, esse barco é útil, esse barco conduz à liberdade! Cuidem dele e o preservem para que todos possam continuar atravessando em segurança!” E assim fazendo, novamente, essa pessoa se dirige a cada um e a cada um oferece uma instrução específica: “Amigo, não fique parado na outra margem, adentre a correnteza”, “Amigo, agora que começou a travessia é hora de segurar-se bem ao barco! O começo é difícil, agarre-se para não cair!”, “Amigo, agora que está chegando ao fim não se agarre tanto ao barco, apenas tome cuidado a fim de não parar antes da hora!”, “Amigo, é agora! É chegado o momento de saltar para a outra margem! Solte o barco!”. E ao fim ela instrui: “Esses barcos são necessários para que outros, assim como nós, perfaçam a travessia. Amigos, preservem os barcos para que outros também o façam ao vê-los assim agindo. Instruam a todos no modo correto de usá-los. Compartilhem seu próprio veículo, não o destruam precocemente”. Este é o exemplo mais apropriado.
E tal é a maneira como o Buddha ensinou e rogou para que seu Sangha de monges e monjas preservassem o corpo de ensinamentos e as regras de disciplina, para que pudessem compartilhá-los com as futuras gerações. Por essa mesma razão, também, consta no Sutra dos Oito Despertares dos Grandes Seres:
“…Com diligência, eles (os Grandes Seres) trilham o Caminho, cultivam a Compaixão e a Sabedoria, navegam com o Corpo do Dharma e alcançam a outra margem do Nirvana. Então retornam novamente ao samsara para liberar a todos os seres, orientando-os mediante estes mesmos princípios” (…復還生死,度脫眾生。以前八事,開導一切,令諸眾生,覺生死苦,捨離五欲,修心聖道。)
CONCLUSÃO
Em suma, a preocupação da via espiritual não pode ser meramente individualista, nem imprudente. Buddha, ao considerar o coletivo, sabia que precisaríamos de métodos bem sistematizados que fossem passados adiante de geração em geração. Estes métodos funcionam como um veículo. E tal é a proposta da tradição buddhista, tal é sua importância: individualmente, podemos utilizá-la para atravessar nosso sofrimento com segurança; coletivamente, podemos preservá-la para que outros também tenham a chance de fazê-lo. O objetivo continua sendo que todos atinjam a margem da paz e serenidade definitivas. Henrique Pires. (Com endosso de Genshô Sensei)