Muitas vezes surgem questionamentos de qual é o papel do Zen realmente, na Escola Soto Zen budista. Então nós temos que compreender um aspecto interessante, de que o Zen surgiu na China, dentro de uma sociedade, vindo da Índia, trazido por Bodhidarma, por volta do ano 527 d.C., e a China já era um país budista, onde o budismo estava presente há 500 anos e, naquele momento, era um país predominantemente budista. O próprio imperador se considerava budista.
Então nós perguntaríamos: “o que faz o Zen quando surge nessa sociedade budista? Como é que o Zen se comporta?”. O Zen tinha a característica de ter Mestres que estavam procurando pessoas que demandassem a iluminação. Bodhidharma queria alunos que demandassem a iluminação. Muitas vezes eu já repeti a história de Bodhidharma e do imperador Wu. Bodhidharma se apresenta à frente do imperador Wu, chamado pelo imperador, que ouviu falar que um grande Mestre budista havia chegado da Índia, lugar de onde era originário o budismo. Chegando à frente do imperador Wu, este pergunta: “’eu, imperador, construí muitos templos e mosteiros para o budismo, que méritos eu acumulei nos céus por ter feito isso?”. E Bodhidharma responde: “mérito nenhum, majestade”. Aí a majestade não gosta muito da resposta e diz: “’Então qual é a grande verdade da sagrada doutrina?”. E Bodhidharma responde: “vazio ilimitado, essa é a grande verdade”.
O que ele quer dizer? Nenhuma coisa tem um EU inerente, não existe nada que seja um eu no mundo, nada que seja realmente separado. “Vazio ilimitado. E não há nada que possa ser chamado de sagrado”. É uma resposta muito interessante, não há nada que possa ser chamado de sagrado. Tudo é sagrado. Se tudo é uno, tudo é sagrado. Não há nada separado do sagrado, isso é sagrado, aquilo é profano. Isso é divisão na cabeça dos homens. Tudo é sagrado. O imperador não entende a resposta e pergunta: “Então quem é que eu tenho na minha frente?”. E Bodhidharma responde, “não faço a menor ideia”. O que é uma resposta coerente com a primeira, ele diz, “eu não faço a menor ideia de quem está na sua frente porque eu não sou separado, eu não posso nomear a mim de maneira tal a me distinguir do resto, se eu fizer isso estarei elaborando um engano”. É isso que Bodhidharma responde.
Aí Bodhidharma sai, atravessa o rio e vai pra Shaolin, interna-se numa caverna e diz-se que ficou 9 anos fazendo zazen. E muitos apareceram lá querendo aprender com aquele grande e famoso mestre que tinha respondido para o imperador, deixado o imperador confuso. Aí Bodhidharma não dá atenção pra nenhum deles, e eles quando veem aquilo vão embora, até que Taiso Eka vai até lá e fica na frente da caverna sem desistir durante 3 dias. No terceiro dia neva, a neve cobre os pés de Eka, que fica desesperado, já com fome, sede, e agora frio excruciante, ele corta o braço pra mostrar sua sinceridade, pra jurar pelo seu sangue. Vendo seu sangue cair na neve, Bodhidharma vai até ele e pergunta: “muito bem, o que é que você quer”? E Eka diz. “minha alma não tem paz, por favor pacifica minha alma”. E Bodhidharma responde, “me mostra tua alma e eu a pacificarei”.
Eka não consegue resposta nenhuma, não consegue encontrar sua alma. E Bodhidharma diz: “pronto, já pacifiquei a tua alma”. Tendo passado por toda aquela angústia, desespero, ter chegado até lá, disposto a aprender com um Mestre, depois de tudo aquilo que Eka tinha passado, quando Bodhidharma dá essa resposta pra ele, ele desperta das ilusões, descobre que ele não tem uma alma, sente-se uno com todas as coisas, compreende o que Bodhidharma estava querendo dizer. E assim Eka fica como discípulo de Bodhidharma e ele é nosso 27º patriarca da linhagem. Bodhidharma é o 26º e Taiso Eka Daioshô, grande mestre, o 27º. E nós descendemos dessa linhagem de ensinamento.
Por causa disso, e seguindo essa tradição, nós não tratamos os alunos muito bem, eles vêm aqui desejando ser muito bem tratados e a gente senta eles de frente pra parede. O aluno chega, faz zazen. Se ele não vai embora, é bem-vindo. Esse é o gosto, é o sabor do Zen. Depois de ter passado isso então ele pode assistir a uma palestra. Mas se ele tivesse ido embora não poderia ouvir nenhuma palestra, porque primeiro o aluno tem que passar por algo. Não foram 3 dias do lado de fora sem comer nem beber, não nevou…. não precisou cortar o braço. Taiso Eka é representado sem um dos braços. A história, o mito em si, provavelmente Taiso Eka não cortou o braço, cortou o braço pra fazer juramento de sangue, ou seja, deu um talho no braço pra mostrar seu sangue, pra mostrar sinceridade, antigamente se dizia: “juro pelo meu sangue”. Então o mito amplifica as histórias, mas o mito conta pra nós o espírito do Zen. (continua)