Pergunta – Antes da manifestação na forma, haveria além do carma, a consciência?
Monge Genshô – O que chamamos de “consciência” é a onda cármica se movimentando. Não estamos falando de consciência de um “eu”. Esse é o problema da palavra consciência, precisaria existir outra palavra. Eu prefiro a expressão “manifestação cármica” ou “onda cármica”. Não há um “eu” e sim movimento, e é esse movimento que gera uma identidade. Porque você não se lembra do passado? Porque não há memória, pois a onda cármica não carrega a memória da vida passada.
Teoricamente tudo no universo está registrado e mantido, porque o universo sendo uma manifestação do que aconteceu antes, é ele próprio o registro do passado. Quando olhamos a Terra sabemos que aqui já viveram dinossauros, que houve períodos gelados, chuva de meteoros etc., podemos saber disso tudo, pois tudo está registrado no evento presente que contém o passado. Esse passado pode, então, ser acessado, mas não carregado como uma memória por uma manifestação cármica.
Pergunta – Isso me fez lembrar a palestra de ontem onde o senhor falava sobre o gás e o explorador e de que ao comermos o arroz, toda a história do universo está ali. É esse acesso que Buda teve, ou seja, conseguiu ver além da forma e do vazio?
Monge Genshô – Sim, existe na Escola Yogacara o conceito de “Alaya Vijnana”, que é a consciência depósito do universo. Se você conseguir acessar essa consciência, terá acesso a suas vidas anteriores. Porém está lá e não em você. Você terá o acesso a esse arquivo que você mesmo é parte. Não há nada de milagroso dizer que alguém possa recordar suas quinhentas manifestações anteriores. Dentro desse raciocínio não. Mas repetindo, essas coisas não são dogmas ou artigos de fé, são elaborações teóricas construídas pelos filósofos Budistas ao longo de milênios. Eles tinham que construir uma filosofia em cima de uma não-crença, sem um criador ou coisas desse tipo.
Pergunta – Ainda sim tudo isso é uma teoria.
Monge Genshô – Exato, faz parte da filosofia Budista. Cada escola Budista tem um arcabouço diferente. A Escola Yogacara, que influenciou muito o Zen, vai ao extremo de dizer que tudo não passa de consciência, é minha consciência quem cria a realidade, cria essa mesa e essa xícara, mas no Zen essa idéia não foi adotada nesse nível. Essa xícara existe independente de mim, mesmo que eu desapareça, a xícara continuará aqui. A única coisa que posso dizer é que a xícara deixará de ser uma xícara, ela poderá ter todas as características de xícara, porém se não existirem os seres que a vejam como tal, um recipiente para bebidas com uma alça, ela deixa de ser xícara, será apenas um pedaço de cerâmica.
Se olharmos as coisas sem nossa consciência não sabemos sua finalidade. Uma xícara só é uma xícara porque tem uma função de xícara que nós lhe damos. Vamos supor que toda a civilização desaparecesse do planeta Terra e seres de outro planeta aqui chegassem. Vamos imaginar o relatório desses cientistas visitantes: “existiam seres que habitavam pequenas casas e a julgar pelo tamanho dessas moradias esses habitantes tinham uma altura que variava entre um metro e setenta a dois metros. Porém encontramos edifícios maiores nos centros com portas de mais de dez metros de altura. Isso pode significar que existiam outros seres maiores, que moravam nos centros, eram importantes, pois moravam em casas maiores e especiais e eram muito maiores que a maioria da população”.
Nós que sabemos a função das catedrais temos outra leitura. Do ponto de vista do Zen, nós construímos nossa interpretação e percepção das coisas com a nossa mente, mas as coisas existem independentemente de nossa mente, o que muda é nossa interpretação e esta depende da mente. Por isso pela mesma mente uma pessoa pode andar nesse mundo e julgá-lo um lugar maravilhoso e outra pessoa no mesmo caminho e no mesmo lugar ver todas as coisas como horríveis e sem sentido.
O mundo é o mesmo, o que é diferente é a mente das pessoas. O que estamos fazendo quando praticamos zazen? Treinando para mudar a mente, pois mudando a mente mudamos o mundo, foi isso que Shakyamuni Buda disse: “Que maravilha, eu a grande Terra e todos os seres nesse momento atingimos a iluminação”. Tudo mudou porque o olhar dele mudou. Temos que tirar nossos olhos deludidos e colocar os olhos de Buda e passar a ver o mundo de outra forma, uma coisa que era obscura e sem sentido, transforma-se em algo maravilhoso e profundo.