Sarnath_Lion – Capital of Ashoka
O mito do Hinayana
por Kåre A. Lie
Nos séculos por volta do nascimento do Cristo, havia um desenvolvimento radical acontecendo no Buddhismo. Uma nova escola surgiu e seus adeptos a chamaram Mahayana [1]. Como essa nova escola se diferenciou das escolas mais antigas pode ser encontrado em qualquer história do Buddhismo. Aqui vamos nos concentrar em um dos resultados desse cisma: o termo Hinayana.
Os adeptos das escolas antigas criticaram os Mahayanistas, especialmente por criarem novos sutras, forjando a palavra do Buddha. Os Mahayanistas, por sua vez, reagiram a essa crítica acusando seus oponentes de não compreenderem completamente os ensinamentos do Buddha e de serem egoístas de mentalidade estreita. O debate esquentou e acusações fluíram de ambos os lados. Então algumas pessoas brilhantes do lado Mahayana do debate criaram o par de palavras Mahayana/Hinayana, e ele pegou. Eles chamaram seus oponentes de Hinayana, e essa palavra funcionou muito bem como um insulto – com uma simplicidade e paralelismo com o Mahayana que qualquer tolo poderia assimilar.
Hinayana, ou, mais corretamente, hiinayaana é um termo altamente depreciativo. Ele não significa simplesmente “o veículo menor” como geralmente é colocado. O segundo elemento de hina-yaana – que é yaana – significa veículo. Mas hiina raramente tem o simples significado de “menor”
ou “pequeno”. Se fosse esse o caso, os textos páli (ou sânscrito) teriam usado-o em outras conexões como o oposto de mahaa – grande. Mas não o fizeram. O oposto de mahaa é cuu.la, assim essa é a palavra normal para “pequeno”.
O termo Hinayana é o eco de um debate morto há muito tempo – ou ainda um debate onde um lado está morto e o outro está gritando aos ventos.
Quem eram os oponentes que foram rotulados como Hinayana? O Theravada? Provavelmente não. Na época em que o Mahayana surgiu, o Theravada havia “emigrado” principalmente para Sri Lanka, e dificilmente poderia ser contado entre as escolas dominantes nas terras continentais indianas – onde o debate Mahayana/Hinayana aconteceu. A mais influente das antigas escolas naquele tempo era a Sarvastivada, assim eles foram os mais prováveis – mas dificilmente os únicos – alvos das invectivas “Hinayana”.
Agora a Sarvastivada e as outras escolas antigas da Índia estão mortas, exceto Theravada, mas o debate e os argumentos encontraram seu lugar nos sutras Mahayana, como, por exemplo, é aparente na propaganda anti-Hinayana do Sutra do Lótus – e continua ecoando nos ensinamentos Mahayana e Vajrayana.
Hoje há confusão, pelos Mahayanistas/Vajrayanistas usarem o termo Hinayana de três maneiras diferentes:
1.. No sentido histórico: escolas pré-Mahayanistas são chamadas Hinayana.
2.. O Theravada moderno é confundido com Hinayana.
3.. O termo Hinayana é usado para uma parte interna do ensinamento Mahayana/Vajrayana.
Vamos dar uma olhada mais de perto nesses três usos:
1. Alguns afirmam que a palavra Hinayana como um termo para as escolas mais antigas é um uso que pertence a um passado distante somente.
Isso não é correto. Pode ser encontrado em vários trabalhos modernos de referência, e em literatura mais especializada ele pode, por exemplo, ser encontrado em Buddhist Philosophy In Theory and Practice, de H.V. Guenther, citando trabalhos tibetanos dos séculos XVIII e XX.
2. Como um exemplo de confusão de Hinayana com Theravada, irei citar Buddha for Beginners, da bibliografia de Jane Hope (Jane Hope estudou com Chogyam Trungpa Rinpoche), impresso em 1995 (eu tenho somente a versão norueguesa disponível, assim espero que a minha tradução para o inglês não seja muito inacurada): “Buddhismo Hinayana. Uma boa introdução ao tradicional Buddhismo Hinayana é What the Buddha Taught, de Walpola Rahula… Com um ponto de vista atual e escrito por dois ocidentais treinados na tradição Theravada, é… Seeking the Heart of Wisdom, por Joseph Goldstein e Jack Kornfield…”
3. Agora sobre uma constante confusão que tem base no Buddhismo tibetano. Alguns dizem que Hinayana e Mahayana há muito são dois termos usados para descrever duas diferentes atitudes espirituais, e citam o sétimo capítulo (“Loving Kindness and Compassion”) do clássico tibetano The Jewel Ornament of Liberation, escrito no século X, onde o autor, Jé Gampopa se refere a Hinayana como “menor capacidade” (“theg pa dman pa”). O parágrafo se lê como segue: “‘Apego ao bem-estar de mera paz(1)’ significa a atitude de menor capacidade(2) onde o desejo de transcender o sofrimento é focado somente em si. Isso obstrui a consideração com os outros e dessa forma há pouco desenvolvimento de altruísmo […] Quando a bondade e a compaixão se tornam parte do ser, há tanto cuidado pelos outros seres conscientes que ele não poderia almejar a liberação somente para si. […] Mestre Manjushriikiirti disse: ‘Um seguidor do Mahayana não deveria estar sem bondade e compaixão por um momento sequer’, e ‘Não é a raiva e o ódio mas a bondade e a compaixão que concedem o bem-estar aos outros’.”
As notas de rodapé dessa passagem indicam o seguinte: (1) o tibetano zhi.ba significa “paz”. É traduzido como “mera paz” nessa seção do livro, já que é usado por Gampopa para denotar a paz relativamente sem compaixão que resulta do desenvolvimento somente da meditação de concentração. (2) Hinayana: “menor capacidade”, muitas vezes traduzido como “veículo menor”. O termo implica na capacidade de carregar um fardo. Nesse caso o fardo é o próprio ser, já que seu comprometimento é conduzir a si mesmo à liberação, não a todos os seres (como é o caso no Mahayana, a “maior capacidade”).
O problema e confusão aqui é que obviamente essa análise não se refere diretamente à palavra hiinayaana em páli/sânscrito, mas à sua tradução tibetana “theg pa dman pa”. Esse é um aspecto chave, como será mostrado abaixo.
A palavra Hinayana não é tibetano, não é chinês, inglês ou bantu.
É páli e sânscrito. Dessa maneira a única abordagem sensata para determinar o significado da palavra é estudar como a palavra hiinayaana é usada nos textos páli e sânscrito.
O segundo elemento, -yaana, significa veículo. Não há dissensão sobre isso.
Como é então usada “hiina” nos textos canônicos páli?
Todo buddhista conhece o primeiro sermão do Buddha gravado, o Dhammacakkappavattanasutta falado aos cinco ascetas que se tornaram os primeiro cinco bhikkhus [2]. Nele o Buddha diz: “Esses dois extremos, monges, não são praticados por aquele que transcendeu o mundo. Quais são os dois? Aquele conjugado com as paixões e luxúria, baixo (hiina), grosseiro, vulgar, ignóbil e danoso…”
Sabendo que o estilo do sutta muitas vezes usa cadeias de sinônimos dessa maneira, assim eles fortalecem e definem-se um ao outro, pode-se considerar “grosseiro, vulgar, ignóbil e danoso” como definições auxiliares de “hiina” nesse caso.
Aqui o Buddha claramente denota o caminho a não ser praticado como hiina.
Em outros textos e comentários páli hinna muitas vezes ocorrem na combinação hiina-majjhima-pa.niita, que é: ruim – médio – bom. No contexto de hiina – majjhima – pa.niita (ou algumas vezes somente hiina – pa.niita) a palavra hiina é sempre usada como um termo para qualidades indesejadas, como por exemplo o ódio, avareza e ignorância. Ela obviamente significa “baixo, indesejável, desprezível” – e não “pequeno” ou “menor”.
O comentário Mahaniddesa-atthakatha, um dos textos onde a tríade ocorre, define a palavra assim: hiinattike hiinaati laamakaa (na tríade “hiina” é “laamakaa”). Agora laamaka é definida pelo PTS Dictionary dessa
maneira: “insignificante, pobre, inferior, mau, pecaminoso. O sinônimo comum é paapa”. E paapa significa “ruim, mau”. Assim parece que as definições vão de mal a pior. O comentário então dá exemplos e explica que os desejos que causam renascimento em niraya (inferno, purgatório) são hiina.
Agora para os textos em sânscrito. Em Lalitavistara encontramos uma versão do Dhammacakkappavattanasutta, onde a palavra “hiina” é usada exatamente como na citação acima da versão páli do sutta.
Em Mahayanasutralankara por Asanga, que é um texto Mahayana muito representativo, encontramos algo de interesse para nossa busca. Asanga diz:
“Há três grupos de pessoas: hiina-madhyama-vishishta… (ruins – médios – excelentes).” Essa expressão é paralela ao páli hiina-majjhima-pa.niita e vem mostrar que os Mahayanistas que cunharam o termo “hiinayaana”
consideraram “hiina” como um termo depreciativo, com o mesmo sentido dos textos páli.
Um texto muito interessante é uma edição do Catushparishatsutra onde o texto é apresentado em quatro colunas paralelas: sânscrito, páli (Mahavagga), tibetano e uma tradução alemã da versão chinesa. Aqui, novamente, encontramos o Dhammacakkappavattanasutta. Já observamos em páli e sânscrito. A versão alemã do chinês diz: “Erstens: Gefallen zu finden an und anzunehmen die niedrigen und üblen Sitten der gewöhnliche Personen…” É um tanto impreciso se aqui “niedrigen” (desprezível) ou “üblen” (mau, ruim) que corresponde a “hiina”. Mas pelo menos é claro que a conotação fortemente negativa de “hiina” foi mantida na tradução chinesa. Nada mudou dos significados páli e sânscrito.
Na coluna tibetana, percebemos que a palavra “dman-pa” do tibetano toma o lugar correspondente ao sânscrito “hiina”, coincidindo com a citação de Jé Gampopa acima. E aqui temos a causa de posteriores confusões e equívocos do termo hiinayaana. Vejamos o que dicionários tibetano-inglês dizem sobre “dman-pa”: Sarat Chandra Das’ Dictionary diz: “dman-pa: baixo, em referência a quantidade ou qualidade, pequeno”. Jäschke’s Dictionary é ainda mais esclarecedor: “dman-pa: 1. baixo, e referência a quantidade, pequeno. 2. em referência a qualidade: indiferente, inferior (sânscrito:
hiina).”
Dessa forma parece que a palavra do sânscrito hiina, que sem qualquer dúvida razoável significa “de baixa qualidade”, foi traduzida pela palavra dman-pa do tibetano, que tem o duplo significado “baixa qualidade” e “baixa quantidade”. E a citação acima de Jé Gampopa parece indicar que muitos tibetanos daí por diante lê somente o segundo dos dois significados, como “menor capacidade”, “capacidade mais baixa”, assim o significado foi distorcido de “baixa qualidade” para “baixa quantidade”.
Assim vemos que a confusão se originou do fato que dman-pa tem dois significados em tibetano. Hinayana – originalmente significando “veículo de qualidade desprezível” – adquiriu o novo significado “veículo de menor capacidade”. Mas isso é resultado de um método errado. É obviamente errado projetar o novo significado tibetano de volta à palavra sânscrito/páli e dizer que “esse é o significado de Hinayana, porque é assim que os mestres tibetanos explicam-na.” O que os mestres tibetanos explicam é a palavra dman-pa do tibetano, não a palavra hiina do sânscrito.
Assim sendo é claro que não se pode afirmar que Hinayana tem o significado “brando” que a tradição tibetana lhe deu, através da palavra dman-pa do tibetano. Hinayana não é tibetano, é páli/sânscrito, e é ofensiva, o significado depreciativo permanece inalterado por quaisquer tentativas de suavização.
O que, então, é Hinayana? É o Buddhismo Theravada? Não, isso é tanto insultuoso quanto provavelmente é historicamente incorreto. É uma atitude espiritual dentro dos sistemas Mahayana e Vajrayana? Não, esse é o tibetano “theg pa dman pa”, a atitude de menor capacidade, e não o sânscrito Hinayana, “o veículo inferior” [3]. Dessa forma, não há Hinayana. Hinayana não é nada além de um mito, ainda que confuso e destrutivo, e Buddhistas sábios deveriam deixar essa palavra repousar nas prateleiras do Museu dos Cismas, aonde ele certamente pertence, e encontrar outras palavras para denotar essas atitudes espirituais que eles desejam definir.
Traduzido e comentado por Flávio Costa.
Copyright © 2000, Kåre A. Lie. Todos os direitos reservados.
Telefone: 33 38 55 72, Fax: 33 38 62 56, E-mail: alberlie@online.no
————————————————————————–
[1] Nesse ponto o texto não está muito claro, pois dá a impressão que Mahayana é uma escola, sendo que na verdade é um grupo de escolas, considerado um veículo do Buddhismo.
[2] Bhikkhu é a palavra páli que se refere a monge (masculino).
[3] Infelizmente essa tradução já se convencionou no Buddhismo tibetano, sendo pouco provável que ela deixe de ser empregada.