“Boatos espalharam-se por toda a região acerca do sábio Homem Santo que vivia em uma pequena casa sobre a montanha. Um homem da vila decidiu fazer a longa e difícil jornada para visitá-lo. Quando chegou na casa, ele viu um simples velho dentro que o recebeu, abrindo a porta.
‘Eu gostaria de ver o sábio Homem Santo,’ disse ele ao outro. O velho sorriu e permitiu-o entrar.
Enquanto eles caminhavam ao longo da casa, o homem da vila olhava ansiosamente em torno, antecipando seu encontro místico e divino com um homem considerado um verdadeiro Santo. Mas antes que pudesse dar pela coisa, ele já havia percorrido a extensão da casa e levado para fora. Ele parou e voltou-se para o velho:
‘Mas eu quero ver o Homem Santo!’
‘Já o fizeste.’ disse o velho. ‘Todos que tu encontras em tua vida, mesmo se eles pareçam simples e insignificantes… veja cada um deles como um sábio Homem Santo. Se fizeres deste modo, então quaisquer que sejam os problemas que trouxeste aqui hoje, serão resolvidos.’
E fechou a porta.”
Conto Zen
Quem não procura um mestre, um guia, um orientador? De certo modo estamos todos nesta busca, ou já estivemos em algum momento, até que a decepção do cotidiano sem mágica dominasse nosso coração. Já na infância (quem sabe justamente por causa dela) ansiosamente sonhávamos encontrar o herói ou heroína que possuiria o maravilhamento e dignidade mágica dos seres perfeitos. Queríamos estar próximos desta personagem luminosa e bela, e de muitas formas também queríamos ser como ela. De início, imaginamos o Mestre nas figuras imaginárias e celestiais, nas fadas-madrinhas, nos magos poderosos, nos seres maravilhosamente inefáveis que povoam as nossas mentes infantis. Lutavam contra dragões, contra os monstros que espreitavam nossos sonhos.
Logo depois surge a possibilidade do Mestre existir em nosso pai, nossa mãe; para aqueles em cuja infância esta possibilidade era impossível, o Mestre era todo aquele que nos transmitisse a promessa de força e orientação – para melhor ou para pior: um professor, nossos avós, quem sabe? À medida que crescemos e o mundo se torna cada vez mais difícil de definir apenas através dos contos e sonhos da infância, recriamos a concepção do mestre através das nossas muitas e variadas projeções e expectativas pessoais, nossa educação religiosa, nossa cultura. Em determinado momento o mestre se dilui no amplo deserto de concretude, racionalismo e rotina que muitas vidas se tornam. O poderoso sonho de infância, aquela potencialidade valiosa que toda criança carrega consigo e que poderia fazer surgir em cada ser humano toda a sua beleza e sabedoria, se esvai no processo endêmico de inconsciência e falta de discernimento das sociedades. A angústia da solidão da alma espreita os corações cotidianos, fazendo nascer crentes ou céticos, românticos ou cínicos, mas poucos buscadores conscientes.
Assim a idéia do mestre passa para outros universos, e o ideário do orientador e guia é direcionado para o mundo político, social, religioso ou místico menos leve e mais prático da idade adulta. Neste momento o desejo humano de realização psico-espiritual se espraia para um grande espectro de
possibilidades: alguns mantém a beleza potencial da infância e sabem amadurecer esta busca em si mesmos, mas a maioria sucumbe à frieza do cotidiano, à praticidade cética do intelecto ou às futilidades pessoais e simplesmente troca o simbolismo do mestre sensível pelo do mestre vazio, ideológico ou artificial; mais alguns se perdem nas fantasias distorcidas, fanatismos religiosos ou misticismos exacerbados e anseiam pelo encontro com algum ser fantástico, extraordinário ou extraterrestre, que representará em maior ou menor grau aquilo que secretamente esperam encontrar – ou eles mesmos encarnarem.
Força? Poder? Fama? Assombro ou sabedoria mística? Qual será a grande sedução do mestre? Qual será a mágica adulta que nos fará seguir este ou aquele, qual inspiração a figura do líder nos provoca? Pois acredite, todos nós seguimos ou buscamos seguir alguém que nos inspire. Mesmo aqueles que sucumbiram à frieza do dia-a-dia sem mágica ainda desejam ouvir palavras que lhes façam sentir melhor o ritmo da vida, apesar de nem mesmo saberem disso.
Mesmo os racionalistas, determinados a jamais admitir sua subordinação aos sonhos, também abrigam secretamente no coração o anseio pelo encontro com a sabedoria (talvez travestida em intelectualismo empírico) e seguem atentamente os seus mestres do conhecimento ou da retórica.
Assim, o que estamos buscando realmente? O que desejamos do mestre? Na verdade, todos queremos um pai. Até porque a mãe, mesmo a mais fria e cruel, não pode nos negar o fato de que habitamos seu útero, e com ela compartilhamos carne e sangue. Mas o pai… onde está nosso pai? Como atingi-lo, tocá-lo em sua intimidade, ser uno com ele? Onde está o útero paterno dentro do qual podemos nos forjar homens e mulheres íntegros e sábios? Eis o porque da busca pelo mestre ser uma busca de natureza yang, masculina, criativa; de uma certa forma buscamos a comunhão com o pai, queremos conhecer um modo de também unir nossa carne e sangue com a face masculina da vida. Pois apesar da aparente ditadura paternalista das sociedades humanas, somos muito mais órfãos do toque firme das sábias mãos paternas do que do suave embalar do amoroso colo materno. Por que? Porque a Mulher se define em si mesma, é íntegra em sua profunda união com a terra, é a representação da Raiz do Mundo. Mas o Homem se perde em muitas batalhas, está sempre imerso em uma peregrinação eterna para encontrar sua própria tradução, representa o inefável e fugidio Coração do Céu. Sempre temos a Grande Mãe próxima de nossas mãos e corações; já o Grande Pai, este temos de alcançar por esforço próprio, pois jamais estará no mesmo lugar duas vezes; o mestre não nos espera, ele caminha pela margem do rio, apontando sempre para a verdadeira meta: a margem oposta. Realmente, o Pai se move por caminhos misteriosos…
Mas quando esta constatação nos escapa, quando o vinho do místico não atinge nossos lábios com a força necessária, esquecemos o sentido da busca e queremos apenas um mestre que corrobore nossas metas, que nos diga aquilo que queremos ouvir, e que seja como nossas fantasias pessoais imaginam. Na tradição Taoísta, assim como na Zen-buddhista, há uma importante lição sobre o mestre, lição esta que aprendi no início de minha prática e que se provou completamente pertinente ao longo de meus anos de estudos e esforços: quase sempre subestimamos o verdadeiro mestre.
Essa é uma lição amarga. Certa vez, um amigo me confessou que ele realmente busca encontrar alguém que encarne o poder místico de um mestre; alguém que transmitisse alguma “luz” ou energia transcendente, alguém que emanasse o poder da sabedoria através de fenômenos psíquicos, manifestações de poder mental. Assim, seria fácil ele dizer para si mesmo com convicção: “Sim! ESSE é um verdadeiro mestre!”. Quantos de nós pensam exatamente o mesmo? Quantos entendem a força de caráter e sabedoria como algo que só pode ser transmitido de forma mágica, divina, não-humana?
E no entanto, o mestre possui o coração simples e a mente clara dos seres de bom senso. O mestre não precisa levitar, não transforma o chumbo em ouro, não carrega em si uma necessária magia sedutora. Gostaria de encontrar um mestre? Eu tenho a lhe oferecer duas boas possibilidades, ambas facilmente
alcançáveis: a primeira, observe sua família e amigos; no seio de seus semelhantes mais rotineiros está a face de um mestre poderosíssimo. Este é um mestre implacável e duro, porque ele não é condescendente com nossas vaidades, mimos ou fantasias ignorantes. Em meio às pessoas que povoam nosso cotidiano, pessoas que menos valorizamos como sábias e coerentes, pode-se ouvir o sussurro de uma linguagem sutil de aprendizagem e sabedoria. Mas este mestre exige muita atenção e prática para ser visto e ouvido; normalmente é o mais acessível e o menos perceptível. Afinal, se fôssemos conscientes de que nossa fonte mais profunda de humildade e sabedoria reside justamente nos aspectos menos inusitados da vida, não seriamos estes homens e mulheres tão tensos e insatisfeitos que somos, não é mesmo? Muita tristeza e muitas mágoas seriam evitadas se todos nós soubéssemos enxergar o Mestre no cotidiano de nossas relações familiares e fraternas, nas faces de nossos inimigos e nos gestos de nossos semelhantes.
O segundo meio de buscar o mestre pode ser encontrado no contato com pessoas de bom senso e coerência. Elas existem, podem acreditar. Mas o problema é que frequentemente elas não estão na TV, em templos ou oferecendo palestras grandiosas. O segredo para conhecer este mestre é: aprenda a ouvir atentamente, refletir cuidadosamente, e comprovar por prática direta se aquilo o que é dito é saudável e possui fundamento. Simples não? Nem tanto.
Estamos muito cheios de si para abaixar a nossa guarda e enfrentar as opiniões e idéias com a mente vazia, a mente no não-eu. Aquilo que ouvimos do mundo atinge nosso entendimento após passar pelo filtro de nossas próprias expectativas, nossos anseios, nosso egoísmo. Assim, nem sempre o que entendemos como “saudável” o será realmente. Deste modo, como as tradições zen e taoísta procuram demonstrar, o mestre quase sempre nos passa despercebido, às vezes até menosprezado.
Muitos de nós são profissionais em se posicionarem independentes e alheios a qualquer mestre. O argumento é o mesmo: devemos buscar o mestre em nós mesmos, e não externo a nós. Ora, de fato este argumento tão difundido carece de um detalhe, em geral esquecido: aquilo que sustenta nossa capacidade de auto-organização e auto-orientação depende fundamentalmente daquele mestre externo, sem nome e sem corpo definido, encarnado nos seres extraordinários que passam por nós em certos momentos, apontando o caminho através de suas ações coerentes e candura de espírito. A vida possui uma fantástica capacidade de nos apresentar o místico através do comum. Ela faz isso todo o tempo, sem cessar. Ás vezes conhecemos grandes pessoas, ouvimos advertências e orientações valiosíssimas de seres aparentemente sem nenhuma importância religiosa, social, política ou espiritual, e serão neles que o Mestre vai se manifestar. Só depois, muito depois, poderemos ouvir o mestre interior. Jamais pretenda negar o valor da vida externa na pretenção de atingir seu mestre interno.
Mas e o mestre físico, aquele homem ou mulher palpável junto ao qual podemos nos sentar e ouvir as palavras de conforto e otimismo que irão nos curar as feridas da alma? Bem, estes na verdade são apenas arautos do verdadeiro mestre. Surgem e desaparecem com o tempo, seguindo as marés da vida humana.
São místicos e transcendentais? Isso não tem a mínima importância, os mestres reais são apenas honestos e verdadeiros, e condutores de uma sabedoria claramente amadurecida e equilibrada que pode curar-nos de nós mesmos. Se podem levitar ou lançar raios pelos olhos, será irrelevante.
Como podemos reconhecer o grau de coerência de um pretenso mestre? Para isso, é preciso uma grande dose de disciplina e prática contemplativa, e muita energia de discernimento e atenção. Vivemos um tempo onde muita informação é oferecida, e pouca paciência é praticada para ponderar sobre sua validade. Mas não se iluda com seu mestre, se acha que já o encontrou:
ele também passará. Mesmo o homem ou mulher mais sábio não será o mestre definitivo, eles apenas indicam um caminho de atenção e prática constante, de forma a que reconheçamos finalmente a face e a voz do mestre real em todas as coisas do mundo. Eis porque é dito no zen: se encontrares o Buddha, mate-o. Pois, afinal, não há maior professor e mestre do que este: a liberdade da mente.
Deixo para o final deste ensaio o anúncio da maior busca possível: a busca pela liberação de si mesmo. Quando passamos pela vida olhando cada canto e esquina à procura do santo, do divino e do sábio, devemos aprender a lição de que o ensinamento mais precioso é a simples capacidade de viver sem apegos, sem aversões, sem indiferenças. E quando compreendermos a arte da felicidade através da ótica de consciência, a porta da busca se fecha. O quê mais haveria para procurar?”
Tam Huyen Van – Novembro, 2005 – Ano Buddhista de 2549