Nos tempos de Buda foram estabelecidas algumas regras de prática para as sanghas de monges, que eram na verdade práticas de retiro, ou seja, se retirar do mundo. O monge fazia uma despedida de sua família, portava um manto, naquela época amarelo, pois os leigos vestiam-se de branco. Os leigos chamam-se “upasikas” e desta palavra deriva o nome de nossa cerimônia de renovação de votos, “uposata”.
Aos monges não era permitido terem bens ou trabalhar, pois viviam de mendicância. Na estação das chuvas, que durava três meses na Índia, eles paravam de peregrinar e construíam pequenas cabanas onde moravam durante esse período que era intransitável. Eles deveriam aceitar qualquer comida oferecida, mesmo carne, desde que o animal não fosse morto para eles, ou seja, não deveriam permitir que alguém matasse algum animal para alimentá-los. Com essa regra de aceitar qualquer comida, os monges eram frequentemente acometidos de doenças gastrointestinais. Uma vez que não poderiam comer nada após o meio dia, toda a comida conseguida com a mendicância deveria ser consumida até esse período, não podendo ser guardado nada para o dia seguinte.
Eram proibidas quaisquer substâncias que alterassem a consciência. A primeira discussão a esse respeito, o movimento “Mahasanghika” – cem anos após a morte de Buda, tem uma reinvindicação para beber uma bebida feita de leite fermentado que possuía um teor ligeiramente alcoólico, mas o concílio dos anciões recusa o relaxamento desta regra. Buda antes de morrer declara que as regras poderiam ser alteradas de acordo com a necessidade, desde que se guardassem seu “espírito”. Temos hoje uma tentativa de mudar as regras adaptando-as aos tempos modernos.
A primeira grande mudança dessas regras ocorre quando o Budismo chega à China. O clima da China era diferente, havia o frio do inverno, o que deixou evidente a necessidade de abrigo e fez com que surgissem os monastérios. Isso já havia acontecido na Índia e, à medida que a ordem Budista ia se estabelecendo, ia também se organizando com a construção de prédios e hospedagem para os monges viajantes.
Como a cultura chinesa não aceitava a mendicância, os monges passaram a produzir sua própria comida e construir monastérios permanentes, foi quando então surgiram as cozinhas e, em razão das regras de não matar, essa cozinha era vegana, ou seja, não havia nada na alimentação dos monges derivado de animais. Em razão do clima frio os monges reivindicaram que passasse a ter uma refeição a noite. No inicio eles colocavam pedras quentes em cima do estomago, desta forma eles se aqueciam ao mesmo tempo em que acalmavam as dores estomacais provenientes da fome. A permissão foi concedida e passaram a ter uma sopa quente no jantar, mas para não chamarem esta sopa de refeição, a chamaram de “Pedra Quente”, nome que se mantém até os dias de hoje. A exemplo do que fazemos nos retiros, ela não é uma refeição formal, pois oficialmente ela não existe, então, não são recitados sutras nem fazemos orações e dedicatórias. Podemos ver através destes relatos as adaptações que vem ocorrendo na prática Budista. Nunca houve uma regra que dissesse que os monges deveriam ser vegetarianos.
Quando o Zen chega ao Japão, leva a cultura e práticas chinesas para os monastérios e no século XIX o Budismo sofre grande pressão no Japão. Uma delas é a obrigatoriedade dos monges serem casados, até então eram celibatários. Em 1872 um édito do imperador obrigou todos os monges Budistas de todas as escolas a tomarem esposas e, a partir desse momento, os templos tornaram-se hereditários.
Do ponto de vista Budista, esses acontecimentos são uma clara decadência das regras e na prática, os monges Budistas japoneses deixaram de ser monges para tornarem-se reverendos ou pastores e, de duzentas e cinquenta e uma regras, passaram a assumir apenas dezesseis em sua ordenação. É essa situação que nós no ocidente herdamos. Existem algumas vantagens com essas mudanças ocorridas no Japão. Uma é que o Budismo japonês tem mais facilidade em ordenar monges. Podemos trabalhar e casar, ou seja, somos leigos ordenados. O lado negativo é que o Budismo japonês sofreu uma clara decadência. Se por um lado temos a facilidade de expansão, por outro temos o enfraquecimento do indivíduo em sua dedicação. Com a demanda familiar fica claro o enfraquecimento da dedicação dos monges em sua prática. Com os templos tornando-se hereditários, a vocação passa a ser também contestada, pois os templos como cartórios tornam-se bons negócios. Essa é a verdadeira situação do Budismo japonês.
Há um fato interessante com a chegada do Budismo no ocidente. Como não temos templos para herdar e nem ficaremos ricos com a prática, somos naturalmente mais dedicados, inclusive com a criação de centros do dharma onde há leigos interessados em praticar Zazen, algo muito raro no Japão. Esse discurso é para despertar a consciência em vocês de que nosso Budismo é puro e cheio de boas intenções, não idealizem muito a prática no Japão, vocês poderão se decepcionar. A época de ouro do Budismo foi a séculos atrás. Talvez estejamos vivendo a nossa época de ouro. De certa maneira o Budismo está caminhando para o leste, da Índia onde praticamente não existe mais, deslocou-se para a China onde foi extremamente combatido, teve seu momento áureo antes do ano de 853 quando ocorreu um grande massacre do qual o Budismo nunca se recuperou completamente.
Quando Dogen vai à China procurar pelo Budismo, tem muita dificuldade de encontrar um bom mestre. No Japão também ocorre um período dourado após a chegada de Dogen, mas esse período já se encerrou e temos agora no ocidente a mesma oportunidade de criar um novo ciclo para o Budismo. Nós não somos conscientes disso. Fico triste quando tenho notícias de pessoas que foram para o Japão e voltam dizendo que lá está o verdadeiro Zen. O Zen está aqui, quando pessoas que sabem muito pouco sobre a história ou sobre a instituição sentam honestamente de frente para a parede.