Na nossa conversa de hoje eu gostaria de falar sobre dois temas muito importantes no estudo e na prática budista, mas são dois temas antagônicos: egoísmo e compaixão.
Na tradição budista, o exercício da compaixão é uma experiência fundamental. No contexto contemplativo, o desenvolvimento das compaixão está associado ao que se chama de desenvolvimento de uma “Mente Bodichita”.
O sustentáculo da compaixão na ótica budista, é a compreensão. Nós praticamos para poder reconhecer e compreender a nós mesmos. Compreender a nós mesmos abre margem para que nos possamos superar os aspectos de nossa natureza que projetam conflitos, frustrações, e raivas e rancores. A superação da frustração, da raiva e do rancor, só vai se dar através de profunda compreensão.
Situações podem ocorrer nas nossas vidas que criem problemas graves, criem sofrimentos, decepções, situações difíceis. Quando a mente não consegue compreender plenamente o mecanismo não saudável que atua neste processo, a mente projeta rancores, medos, raivas.
Um assunto muito difícil é a questão da não violência. A questão da compaixão, também mobiliza. Nós vivemos em uma sociedade que tende a achar ou confundir a compaixão com condescendência. Isso não é verdade no campo da experiência contemplativa. A compaixão só pode ocorrer e a mente Bodichita só pode se manifestar quando nós aprendemos a superar qualquer projeção egóica. Portanto, eu hoje vou falar de compaixão e egoísmo, que são elementos antagônicos, mas no fundo interligados.
Na descrição budista, o egoísmo é uma projeção, aspectos emocionais, pensamentos, sentimentos, formações mentais, nível da consciência, que formam a nossa ideia de identidade pessoal. Entrando através dos nossos sentidos nesses quatro campos, existem experiências, aprendizagem, ancestralidade, cultura, e tudo isso vai forjando e consolidando a ideia de um “eu”. O “eu” desenvolve posturas, atitudes, desenvolve opiniões, concepções.
A grande questão é, como esse “eu “é constituído? O que o alimenta? O que o alimentou no passado para ser o que ele é agora? Independentemente disso, todo indivíduo, todo ser humano que tem a ideia de si mesmo, pode trabalhar a identidade pessoal para transformar e curar os aspectos negativos e valorizar os aspectos positivos, os “vassanas”.
Mas no campo fundamental do eu, existe um processo de distorção intensa das coisas que nós vivemos, entendemos, conhecemos, e aí nós criamos toda uma complexidade de comportamentos, atitudes, opiniões, interpretações.
O egoísmo é a distorção deste processo, mais intensa. O “eu”, no campo do samsara, tem uma função de manter o equilíbrio da mente, a mente imediata, a mente concreta, a mente que funciona no mundo. Se nós aniquilarmos o eu, ficamos loucos. Mas o eu condicionado, é uma distorção intensa, que faz com que o processo de projeção e expectativa se torne muito forte e, infelizmente, muito doentio.
O mecanismo do egoísmo é: eu projeto expectativas, desejos, opiniões, conceitos sobre um objeto. Objeto no conceito budista pode ser o objeto concreto, um pensamento, um sentimento, uma pessoa, qualquer coisa. Quando nós projetamos isso, o que nos estamos fazendo é transferir a ideia de que parte do nosso eu, é agora, o objeto. O construto do meu eu, agora engloba o objeto. E se esse objeto sou eu, ele tem que fazer, tem que agir, tem que existir, como “eu” quero, como eu projeto, como eu imagino que o mundo deva ser. Se esse objeto começa a agir ou existir de uma forma como eu não projetava, eu começo a me frustrar, começo a tentar controlar esse objeto, “ele é meu” e se alguém vem aqui e pega isso, eu fico com ciúme, com raiva. É “meu”, é meu, não é seu.
Quando nos dizemos “é meu”, nós queremos dizer “sou eu”. E eu não vou permitir ser tomado por qualquer outra coisa. De uma maneira simbólica, simples, essa é a forma como o mecanismo do egoísmo se manifesta. (continua)
Trecho de palestra Proferida por Monge Kômyô, Sesshin – Goiânia, 2014.