Muitas lendas foram contadas a respeito de Buda, dizem que quando ele nasceu saiu andando, caiu uma chuva doce, choveram pétalas e ele apontou para cima e para baixo, há uma estátua de Buda assim, Buda menino, e disse: “entre o céu e a terra eu sou o mais honrado”. Matsu, que foi um grande Mestre Zen da China, ouvindo essa história comentou: “se eu estivesse lá nesse momento, o teria matado a pauladas, e jogado sua carne para os cachorros”.
Como vocês interpretam esse comentário de Matsu?
Aluno – esse auto julgamento dele não condiz com o processo de humildade e a caminhada da iluminação. Porque se ele se julga honrado, se julga mais e diferente dos outros.
Exatamente. Então Matsu fez esse comentário, que se ouvisse isso, o teria matado a pauladas. Isso mostra muito do espírito com que o Zen olha esses aspectos míticos e religiosos que sucedem na história do próprio budismo. Porque o budismo também teve as mesmas tendências de todas as religiões. Teve a tendência à ortodoxia, aqueles que pegam textos do passado e querem conservar os textos tais como eram, naquele tempo, milênios atrás. Dois milênios e meio atrás era assim, será que deve ser assim, ainda hoje?
Por exemplo, quando as mulheres foram admitidas na ordem budista como monjas e rasparam a cabeça, havia muito sexismo. Então para que os homens pudessem admitir aquela revolução de fazer com que as mulheres fossem monjas e sacerdotes, as primeiras regras diziam que uma monja deveria andar sempre a dois passos atrás de um monge. Que uma monja estava sempre subordinada a um homem, nem que ela tivesse 50 anos de prática e ele tivesse sido ordenado ontem, ela estaria subordinada. Então essas são as regras de 2.500 anos atrás, na Índia.
Já na China, 720 anos depois de Cristo, Pai Chang pegou as regras e escreveu de novo, e esqueceu essas coisas todas. Então o Zen, nos últimos 1.400 anos passou a ter monjas abadessas, mestres, e isso mudou completamente, já há 1.400 anos que o Zen tem esse processo, embora, ainda, o número de monjas seja 1/10 do número de monges, principalmente no oriente. Aqui no ocidente, parece que não é bem o caso. Mas, essa tendência à ortodoxia foi abandonada e ela ficou restrita às escolas que ficaram seguindo essas regras, do que chama-se o “Vinaya ” do qual existem várias versões.
O Zen então abandonou o Vinaya indiano, já há um milênio e meio atrás e começou a seguir regras próprias. E também surgiu uma tendência iconoclástica no Zen, bastante forte. Como nos primeiros anos o budismo tornou-se muito estudioso, foi ficando cada vez mais filosófico, cada vez mais profundo, cada vez mais complicado na sua discussão filosófica, então foi acontecendo com ele a mesma coisa que aconteceu em Bizâncio. Quando dizemos assim: “essa é uma discussão bizantina”, é porque em Bizâncio, que é o nome antigo de Constantinopla, que é o nome antigo de Istambul, os teólogos se reuniam e discutiam, diz-se, quantos anjos cabiam na cabeça de um alfinete. E isso parecia uma discussão teológica importante.
Então este tipo de coisa começou a surgir no budismo, por causa do estudo escolástico de grandes estudiosos. E quando Bodhidharma chega na China, ele quebra isso, chega dizendo que a transmissão do Zen é uma transmissão além das palavras e dos textos, diretamente de mestre para discípulo.
E então surgem essas anedotas típicas do Zen, às vezes ultrajantes, como a anedota de que nos mosteiros Zen os textos sagrados, os sutras, ao invés de serem colocados no altar, são colocados em estantes, em outros lugares. E havia um templo onde os textos estavam próximos dos banheiros. E um monge começou a usar os textos para se limpar. O mestre foi informado e chamou o monge. “O que você está fazendo”? E o monge explicou: “Eu descobri que a sabedoria que está nos textos é a sabedoria dos outros, e essa sabedoria é inútil para mim, e então resolvi dar a esses textos que não passam de papel sujo de tinta, uma melhor utilização”.
E o mestre disse: “ah, então você se iluminou! Mas se você tem um traseiro iluminado, use papel limpo!”