Não se pode reificar o Vazio

Não se pode reificar o Vazio

Aluno: Eu percebo que muita gente confunde o vazio do eu com insubstancialidade.
Monge Genshô:
Boa pergunta. Este termo “vazio” não é bom, mas nós não achamos nada para traduzir do japonês. Quando a gente lê o Sutra do Coração tem lá: “forma é vazio e vazio é forma”, esse vazio não significa não existência e também não significa um algo. Você não pode reificar o vazio, ou seja, dar a ele uma realidade. O que o Sutra do Coração diz é que o vazio se manifesta como forma e a forma nada mais é do que o vazio, mas o vazio nada mais é do que a forma. Todos nós aqui somos manifestações cármicas do vazio, o vazio permite que isso exista, mas ele não é algo.
Uma analogia para exemplificar. Nós olhamos o mar e vemos todas as ondas. Quando você olha o mar, você está vendo nada mais do que ondas, agora imaginem que nós pegamos uma lâmina e cortamos toda a superfície do mar para tirar toda essa manifestação de onda, de modo que seja possível ver o mar real. Tiro todas as ondas, a espuma, a agitação e imediatamente a superfície que resta se ondula e se agita. Quando você vê de novo: é forma. Por mais que você corte a forma para tentar ver o vazio embaixo, a única coisa que pode aparecer é a forma. Toda forma nada mais é que agitação no vazio. O vazio é forma e a forma é vazio.
Isso me lembra a primeira estrofe de um poema do Gonçalves Dias chamado “A tempestade”. Ele começa assim: “um raio/ fulgura/ no espaço/ esparso/ de luz/ e trêmulo/ e puro/ se aviva/ se esquiva/ rutila/ seduz”. É isso que a forma faz: surge, seduz, rutila e se agita. Depois o poema continua com versos de mais sílabas e vai indo até versos de doze silabas, até que reduz de novo para estrofes cada vez menores e termina com versos de duas sílabas. É uma obra-prima e é toda sobre a forma. A forma surge e desaparece, mas o que resta? Nada, só a base na qual ela se manifesta. Esse ensinamento é bastante difícil.
O Sutra do Coração no início diz que o Bodhisattva meditava profundamente e então viu claramente o vazio dos cinco agregados. Nesse momento ele viu que todas as coisas na verdade são vazias e o Sutra continua com: “óh, Shariputra, forma é vazio e vazio é forma, forma nada mais é que vazio e vazio nada mais é que forma”. Quando compreende isso, o Bodhisattva livra-se instantaneamente de toda dor e sofrimento, mas para ver isso com imensa clareza você precisaria entender que é manifestação da forma e seus filhos também. Todos são temporários. Surgem e desaparecem. Não existe início e nem cessação. Não existe olho, ouvido, nariz, mente, etc.
O ensinamento do Sutra do Coração sintetiza os ensinamentos de 600 Sutras chamados Sutras Prajna Paramita, ou Sutras da compreensão da outra margem. Essa é uma ideia de que existe um rio da ignorância e você está nessa margem. Quando consegue atravessar, chega na margem da sabedoria. Você usa o budismo para atravessar o rio, o budismo é então um barco e quando você chega na outra margem pode abandoná-lo, porque ele era só um veículo. O que acontece com o Bodhisattva é que quando ele chega do outro lado, olha para trás e vê na margem da ignorância muitos seres em sofrimento, então volta e vem buscar os outros. Ele não desiste e fica atravessando inúmeras vezes para levar pessoas para a outra margem, agindo com compaixão. Por isso no fim da noite nós recitamos os votos do Bodhisattva e o primeiro deles é: os seres são inumeráveis e eu faço voto de libertá-los todos. Libertá-los do quê? Do sofrimento. Eu faço o voto e ele é impossível, eu nunca vou parar de atravessar o rio, porque os seres são inumeráveis. Esse é o sentido de vazio e forma; o sentido de ignorância e sabedoria; isso é que é o budismo: um veículo. Existem muitos veículos possíveis para atravessar um rio, não há um que seja melhor. Pode ser que o Zen seja melhor para você, mas não é necessariamente melhor para as outras pessoas, por isso não dizemos que temos a verdade ou que temos o melhor caminho. Isso seria tolice. Seria mais uma forma de vaidade.