Me permitam por favor ler um poema:
“Eu ponderei sobre os ensinos de Buddha
Ao longo de plenos oitenta e quatro anos.
Os portais estão agora todos fechados para mim.
Ninguém jamais esteve aqui ─
Quem é esse, então, que está em vias de morrer,
E por que lamentar para nada?
ADEUS!
A noite está clara,
A lua brilha suavemente,
O vento nos pinheiros
É como o som de uma lira…
Na falta de um Eu e de um Outro,
Quem ouve a melodia?”
Jisei (Poema de Morte) ━ Monge Zen Zoso Royo
(Falecido no quinto dia do sexto mês, 1276, aos 84 anos)
Essa é uma tradição antiga no Zen. O jisei não é uma tradição exclusiva do Zen Budismo, no Japão, na Coréia e na China antigamente era comum mesmo leigos antes de morrer escrever um poema. Muito antes de ser um epitáfio, como nós fazemos no ocidente, o poema é uma declaração de vida. O jisei é o momento em que a pessoa apresenta tudo o que aprendeu. No caso do Zen, se tornou uma tradição muito bonita e muito forte.
O Zen, assim como outras escolas tradicionais do Budismo, lidam diferente com a morte. O mestre Meihō Genshō costuma dizer que se nós fossemos capazes de ter consciência de nossa mortalidade todos os dias, a cada dia nossa vida seria maravilhosa. Para o Zen, a morte é a continuidade, não de um eu, mas da vida. A morte do nosso Eu não tem qualquer importância. A vida tem importância. Por isso que esse monge diz: “Ninguém jamais esteve aqui. Quem é esse, então, que está em vias de morrer?” A cada momento nós temos a oportunidade de viver plenamente. A cada momento nós temos a oportunidade de despertar.
O jisei é o exemplo de que até o último instante de nossa vida nós podemos apresentar quem realmente nós somos. Há um poema em que o grande mestre Eihei Dōgen, precursor e fundador do Zen no Japão teria escrito para um praticante Zen. Ele diz:
“A mente em si mesma é Buddha.
Praticar é difícil, ensinar não é difícil.
Não-mente, não-Buddha.
Ensinar é difícil, praticar não é difícil.”
Este é um poema que engloba a essência da linguagem Zen. A compreensão de que tanto a prática quanto o ensinamento pode ser difícil ou não-difícil, quando a pessoa não compreende a mente de Buddha. Ensinar e praticar é ensinar e praticar. Ensinar e praticar está de fato além de difícil ou não difícil. E é por isso que Dōgen diz: “Não-mente, não-Buddha”. “Não-mente, não-Buddha” significa a verdadeira mente e o verdadeiro Buddha.
O ensino Zen procura sempre oferecer às pessoas a oportunidade de perceber que as nossas grandes realizações não dependem de dualidade. Isso e aquilo, certo e errado, o grande ensinamento se abriga na não-mente, o grande Buddha se abriga no não-Buddha. E é por isso que ensinar é difícil e não é difícil. Praticar é difícil, e não é difícil. Reflitam sobre este ensinamento. Ele é um koan, uma proposição para que vocês possam praticar e perceber a resposta por si mesmo. Não por intelecto, não por filosofia, mas por experiência. Assim como o monge Zoso aos 84 anos foi capaz de declarar: “Os ventos dos espinheiros são como um som numa lira. Na falta de um eu e um outro, quem ouve a melodia?” Não-mente, não-Buddha. Os portais do Zen não tem portas, e no entanto, para Zoso-san, os portais estão todos fechados para mim. Os portais não estão fechados, e estão fechados. Esse tipo de ensinamento é a linguagem do Zen. E essa forma de linguagem só vai ser compreendida e acessada se vocês realmente tiverem interesse e determinação de compreender profundamente a si mesmos.
Continue a prática, mantenham a determinação, a serenidade, a paciência, e a humildade. Quem sabe um dia vocês finalmente compreenderão não-mente, não-Buddha.
Teishō proferido por Kōmyō Sensei no dia 20 de maio de 2023 na sangha do Rio de Janeiro.