Recomendado pelo Rev. Wagner o artigo abaixo examina, mais do que o budismo, o efeito dele sobre o comportamento na sociedade japonesa. Certos pontos, como a doação de orgãos tem visões diversas em outros pensadores budistas, sobrepondo-se a compaixão as considerações sobre a integridade corporal.
Devido a extensão posto apenas a parte sobre o budismo.
A Eutanásia na Visão das Grandes Religiões Mundiais
(Budismo, Islamismo, Judaísmo e Cristianismo)
Léo Pessini
Este artigo aborda a questão da eutanásia no âmbito das quatro grandes religiões mundiais, ou seja, o budismo, o islamismo, o judaísmo e o cristianismo. Parte de alguns conceitos fundamentais, tais como vida humana, morte, sofrimento, ser humano e direitos humanos, entre outros, com as matizações específicas dadas pelo patrimônio de valores e crenças de cada religião. Com exceção do budismo, que vê a vida como preciosa, mas não divina, pois não existe um deus criador nesta religião, em todas as outras a vida é considerada sagrada, dom de um ser transcendente, onfiado ao ser humano para torná-la plena. Recusá-la ou cortá-la é uma grande ofensa contra os “céus”
(“Não matarás”). Uma tensão crescente surge em relação às verdades tradicionais e às novas realidades trazidas pelas ciências da vida e da saúde (conceito de morte encefálica, transplantes e doação de órgãos, entre outras novidades), provocando os pensadores religiosos a irem para além do mimetismo fundamentalista, ousarem criativamente na interpretação e resgate do “espírito da lei”. Existe um sim fundamental pela preservação da vida até o seu final natural, manifestado
no cuidado dos moribundos, procurando proporcionar dignidade no adeus à vida,
evitando-se o prolongamento artificial e penoso do processo do morrer.
UNITERMOS – Eutanásia-religiões; bioética-eutanásia; bioética teológica -eutanásia
Introdução
Ao olhar e refletir sobre o futuro da bioética, o eminente bioeticista norte-americano Edmund Pellegrino, do Instituto Kennedy de Bioética (Washington, D.C.), aponta a religião e a bioética teológica como uma das três questões mais proeminentes que a bioética terá de trabalhar no primeiro quarto do próximo século. As outras duas questões levantadas referem-se à diversidade de opiniões sobre o que é bioética (busca de consenso possível?) e o relacionamento dos vários conceitos sobre ética e bioética.
Até agora, a bioética religiosa ficou na penumbra da bioética filosófica. À medida que nossa consciência da diversidade e diferenças culturais cresce, prevê-se que os valores religiosos que embasam o diálogo público virão à superfície. Até o momento, não temos uma metodologia adequada para lidar com a crescente polarização que as convicções trazem ao debate. Precisamos ser capazes de viver e trabalhar juntos, mesmo quando nossas mais profundas convicções filosóficas e religiosas, sobre o que é certo e errado, estejam em conflito (1,2).
As religiões, segundo Hans Kung, são todas mensagens de salvação que procuram responder às mesmas perguntas básicas das pessoas. As perguntas sobre os eternos problemas do amor e sofrimento, culpa e reparação, vida e morte: donde vêm o mundo e suas leis? Por que nascemos e por que devemos morrer? O que governa o destino do indivíduo e da humanidade? Como se fundamentam a consciência moral e a existência de normas éticas? Todas oferecem caminhos semelhantes de salvação: caminhos nas situações de penúria, sofrimento e culpa da vida terrena; indicação de caminhos para um procedimento correto e conscientemente responsável nesta vida, a fim de alcançar uma felicidade duradoura, constante e eterna, a libertação de todo sofrimento, culpa e morte (3,4).
Mas tudo isso também significa que mesmo quem rejeita as religiões tem que levá-las a sério, como realidade social e existencial básica. Elas têm a ver com o sentido e não-sentido da vida, com a liberdade e escravidão das pessoas, com a justiça e opressão dos povos, com a guerra e paz na história e no presente.
As religiões podem dar às pessoas uma norma superior de consciência, aquele imperativo categórico tão importante para a atual sociedade e que obriga numa outra profundidade e firmeza. Pois todas as grandes religiões exigem uma espécie de “regra de ouro” – não se trata de uma norma hipotética, condicional, mas de uma norma incondicional, categórica e apodítica – totalmente praticável diante das mais complexas situações que os indivíduos ou mesmo grupos possam apresentar.
Esta “regra de ouro” já foi atestada por Confúcio: “O que não desejas para ti, também não o faças aos outros” (Confúcio, cerca de 551-489 aC); também no judaísmo, em formulação negativa: “Não faças aos outros, o que não queres que te façam a ti” (Rabi Hillel, 60 aC-10dC); com Jesus de Nazaré, em forma positiva: “O que quereis que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles” (Mt 7,12;Lc6,31); no budismo: “Um estado que não é agradável ou prazeroso para mim não o será para o outro; e como posso impor ao outro um estado que não é agradável ou prazeroso para mim?” (Samyutta Nikaya V, 353.3-342.2); e no islamismo: “Ninguém de vocês é um crente a não ser que deseje para seu irmão o que deseja para si mesmo”.
Esta “regra de ouro” poderia opor-se a uma crua ética de resultados que não é ética nenhuma; também não precisaria ser entendida como pura ética de intenções, que não percebe a realidade. Poderia, sim, ser o centro de uma ética de responsabilidade (Max Weber, Hans Jonas) que sempre leva em consideração as conseqüências de nosso agir e omitir.
Ao contrário das filosofias, as religiões não apresentam apenas modelos de vida abstratos, mas “pessoas modelares”. Por isso, as figuras líderes das religiões mundiais são da maior importância: Buda, Jesus de Nazaré, Confúcio, Lao-Tse ou Maomé. Existe uma grande diferença entre ensinar abstratamente às pessoas uma nova forma de vida e poder apresentar-lhes um modelo concreto de vida comprometida com a nova forma para a qual se deseja convidar alguém: seguir Buda, Jesus Cristo, Confúcio, Lao-Tse ou o profeta Maomé. Para o cristão, Jesus de Nazaré é o caminho, a verdade e a vida, mas “o caminho, a verdade e a vida” para o judeu crente é a Torá; para o muçulmano, o Corão; e para outras religiões, alguma outra pessoa ou coisa.
Isto posto, não duvidamos da pertinência de se abordar a questão da eutanásia e o que as maiores religiões mundiais dizem a respeito. Abalizados pensadores na área da bioética, dizem que, assim como o aborto foi o tema do século XX, com liberalização em muitos países do globo, a eutanásia certamente será a grande questão do século XXI. Nos condicionamentos de um texto introdutório, que tem como objetivo apresentar de forma simples, objetiva e sucinta, consciente de correr o risco de ser simplista, uma questão polêmica tal como a visão da eutanásia das quatro maiores religiões mundiais, a saber: budismo (I), islamismo (II), judaísmo (III) e cristianismo (IV).
I – O budismo
O budismo é uma das maiores religiões mundiais, contando, hoje, com aproximadamente 500 milhões de adeptos. Foi fundado na Índia, por Siddharatha Gautama (480-400 aC), que foi iluminado aos 35 anos e desde então passou a ser conhecido com o título honorífico de Budda, que significa o iluminado. Buda é mais que um personagem histórico a ser reverenciado. Lembremos que a palavra Buddha vem da raiz Buddh, que significa despertar, conhecer, ir às profundezas. Buda é o desperto, estado que todos devemos aspirar e realizar.
Buda não deixou sucessores e não existe uma autoridade central em questões de doutrina e ética, embora a ordem dos monges (sangha) por ele instituída é reconhecida por muitos budistas como a instância autoritativa e intérprete dos seus ensinamentos. O objetivo de todos os budistas é a iluminação (nirvana), um estado de espírito e perfeição moral que pode ser conseguido por qualquer ser humano que viva de acordo com os ensinamentos de Buda. O budismo não acredita num ser superior ou num deus criador (uma religião sem Deus?). Buda não foi Deus ou um deus. Ele foi um ser humano que obteve iluminação completa por meio da meditação e mostrou o caminho do despertar espiritual e da liberdade. Portanto, o budismo não é uma religião de Deus, mas uma via não-teísta, o que não quer dizer o mesmo que ateísta. O budismo simplesmente não entra na questão da existência ou não de Deus, de um criador e sua natureza. Daí que muitos estudiosos ocidentais o encaram mais como uma “filosofia de vida”, caminho de sabedoria, iluminação e compaixão. Como os adoradores de Deus que acreditam que a salvação pode ser obtida para todos através da confissão dos pecados e uma vida de oração, os budistas acreditam que a salvação e a iluminação são conquistadas pela remoção das impurezas e ilusões por meio de uma vida de meditação.
Os preceitos e ensinamentos éticos budistas, conseqüentemente, são vistos não como mandamentos divinos, mas como princípios racionais que, se seguidos, promoverão o florescimento e o bem-estar de si próprio e dos outros. Freqüentemente, os documentos budistas se referem a Buda como sendo o “grande médico”. Assim como o médico cuida das doenças do corpo, Buda cuida das doenças do espírito (5,6,7).
Conceito de morte e transplantes no budismo
A questão da morte encefálica e a conveniência de transplantes de órgãos criaram grande preocupação. A controvérsia está ligada ao sentido da vida e da morte. Recentemente (12.1.98) o Comitê de Bioética da Associação Médica Japonesa (instância consultiva) emitiu um parecer a respeito da morte encefálica e transplantes de órgãos. É significativo que estas recomendações exigem o consentimento informado. O paciente ou a família podem recusar o uso do critério do encéfalo na determinação da morte. Segundo Rihito Kimura, um expoente da bioética no Japão, o público japonês gradualmente aceitará o uso do critério do cérebro para determinar a morte e transplantes de órgãos, embora com sérias restrições. A história mostra que a mudança de atitudes públicas no Japão é possível. Há muito tempo atrás, os japoneses tinham forte objeção em relação à doação de sangue. Isso foi superado e eles hoje apresentam um dos mais altos índices de doação de sangue do mundo (8,9).
Os budistas, tradicionalmente, associaram a vida com a sensibilidade e, num sentido amplo, esta concepção engloba também os animais e plantas. A sensibilidade inclui consciência e sentimento. Uma vez que o sentimento é parte da sensibilidade, muitos budistas não apóiam transplantes de órgãos, especialmente os transplantes de coração. A morte da mente não é a morte da pessoa. Baseado na doutrina da interdependência, a morte é entendida como sendo a dissolução da mente e do corpo. Contudo, a definição comum de morte é a morte de todo o corpo. A “morte” é causada pelo “cortar a respiração de um ser vivente”.
A crença budista na temporalidade também ressalta uma preocupação com os transplantes de órgãos. Uma vez que a vida é transitória e a morte inevitável, e uma vez que a missão espiritual é transcender este mundo, existe uma percepção comum de que a vida e a morte devem seguir seu curso natural. Conseqüentemente, o transplante de órgãos é freqüentemente possível somente às custas da vida de outrem. Tal procedimento viola o preceito que proíbe tirar a vida, diminuindo o valor da mesma. Por isso, alguns budistas advogam o desenvolvimento e uso de órgãos artificiais. Em lugar de prolongar a vida utilizando medidas heróicas, esses budistas dispensam as suas vidas ao cuidado dos moribundos.
Os budistas apelam para a noção de interdependência ao abordar os dilemas éticos. Em relação ao suicídio assistido e assuntos relacionados, a perspectiva budista enfatiza o processo de decisão. Eles procuram levar em consideração todos os aspectos do sofrimento, equilibrando o desejo do indivíduo por uma morte suave com o dever do médico de não causar dano e o desejo da sociedade de preservar a vida.
Os dilemas gerados pelos avanços da moderna tecnologia desafiaram os preceitos do budismo tradicional. Buda estava consciente das limitações da Vinaya (normas monásticas seguidas pelos monges budistas) e de sua capacidade de responder aos novos problemas. Buda sempre enfatizou que ele era um guia, não uma autoridade, e criou um método para determinar a conduta correta. Se a Vinaya, seus comentários e intérpretes atuais não oferecem um curso de ação satisfatório, Buda pediu aos seus discípulos para tomarem suas próprias decisões, baseadas na sabedoria e compaixão. Este ceticismo benevolente de Buda estimula a imaginação moral em relação às difíceis questões éticas.
A resistência em apressar a morte e sua relação com a doação de órgãos provém da imagem tradicional japonesa de se considerar o ser humano como unidade integral de corpo e espírito, mais que aspectos distintos e separados de mente, corpo e espírito. A unidade continua após a morte, de maneira que remover um órgão de um cadáver é visto como perturbador dessa unidade espiritual e corporal. Isto também explica porque as autópsias são rejeitadas no Japão. A unidade vai além do indivíduo. O destino essencial da vida humana envolve um ritmo em que todas as coisas viventes – plantas e animais – vivem juntas no mesmo nível. Esse ensinamento shintanista e budista difere da ética judaico-cristã, que considera os humanos como imagem de Deus, e conseqüentemente estão numa relação diferente com os outros seres viventes. Para o japonês, a morte perturba o ritmo de todas as coisas viventes e, portanto, não deve ser apressada. Contrastando com as preocupações atuais na área da saúde nos Estados Unidos, em não prolongar o processo do morrer indevidamente, o povo japonês está mais preocupado em realizar os rituais do processo do morrer e não em terminar a vida prematuramente (8,10).
Em relação à morte, os budistas japoneses já há muito reconheceram o que os ocidentais estão redescobrindo só recentemente: que a forma de morrer, o momento preciso da morte, é muito importante. Essa premissa fundamental provavelmente é anterior ao próprio budismo, mas se torna bem explícita nos ensinamentos de Buda. Em suas meditações, Buda declarou que a variável crucial que governa o renascimento é a natureza da consciência no momento da morte. Por isso, os budistas atribuíram grande importância ao fato de ter pensamentos apropriados no momento da morte. Em duas obras do Cânon theravada (escola do budismo mais antiga sobrevivente, prevalente no sul da Ásia), o Pwetanvatthu e o Vimanavatthu (histórias dos defuntos), podemos encontrar muitos exemplos desta idéia. Certamente, em muitos sutras os monges visitam leigos em seus leitos de morte para assegurar que os pensamentos dos moribundos sejam salutares e Buda recomenda que os seguidores leigos também se animem reciprocamente em tais ocasiões.
O budismo não vê a morte como o fim da vida, mas simplesmente como uma transição: o suicídio não é, portanto, um escape. Assim, no sangha (comunidade dos seguidores de Buda) inicial, o suicídio foi condenado, em princípio, como uma ação imprópria. Mas os textos budistas mais recentes incluem muitos casos de suicídio que o próprio Buda aceitou e perdoou. Por exemplo, os suicídios de Vakkali e de Channa foram cometidos por causa de enfermidades dolorosas e irreversíveis. Mas é importante observar que a aceitação de Buda aos suicidas não se baseia no fato de eles estarem em estado terminal, mas porque estavam com as mentes livres de egoísmo e de desejos e iluminadas no momento da morte.
O budismo reconheceu há tempos o direito de as pessoas determinarem quando deveriam passar desta existência para a seguinte. O importante, aqui, não é se o corpo vive ou morre, mas se a mente pode permanecer em paz e harmonia consigo mesma. A tradição Jodo (a terra pura) tende a dar ênfase à continuidade da vida, enquanto a tradição Zen tende a sublinhar a importância do momento e a maneira de morrer. Os budistas japoneses demonstraram uma despreocupação com a morte, inclusive maior que a de seus vizinhos. Os japoneses valorizavam mais a paz da mente e a honra da vida do que uma vida longa.
A eutanásia e o código samurai do suicídio
Não por mera coincidência a palavra correspondente a eutanásia em japonês é anrakushi, um termo que tem um significado budista. Na terminologia budista, anrakukoku é outro nome para a Terra Pura, o mundo do Bodhisattva Amida, ao qual esperam ir os japoneses depois da morte. A lei japonesa não penaliza o suicídio; entretanto, considera um crime auxiliar um suicida ou incentivá-lo. Em situações normais, não pode haver nada mais sábio e prudente que isso, pois a pessoa saudável deveria ser incentivada a viver e fazer o máximo possível com sua vida. Mas, nas situações em que se exige songenshi (morte com dignidade), o fato de uma pessoa estar enfrentando uma morte iminente é que faz com que seja moralmente aceitável assisti-la em seu suicídio, em particular se o motivo for a compaixão.
É importante assinalar que o código samurai do suicídio incluía uma disposição para a eutanásia: o kaishakunin (assistente). O simples corte do hara (abdome) era muito doloroso e não provocava uma morte rápida. Depois de cortar o hara, poucos samurais tinham forças suficientes para degolar-se ou cortar a espinha dorsal. Mas sem cortar o pescoço a dor do hara aberto continuaria durante minutos e até horas antes da morte. Portanto, o samurai combinava com um ou mais kaishakunin para que o assistissem em seu suicídio. Enquanto o samurai tranqüilizava sua mente e se preparava para morrer em paz, o kaishakunin permaneceria a seu lado. Se o samurai falasse ao kaishakunin antes ou durante a cerimônia seppuku, a resposta padrão era “go anshin” (mantém tua mente em paz). Todas as interações e conversações que rodeavam um seppuku ordenado oficialmente também estavam fixadas pela tradição, de modo que o suicida pudesse morrer com a menor tensão e a maior paz mental. Depois que o samurai terminasse de abrir o ponto prees-tabelecido ou desse qualquer outro sinal, o kaishakunin tinha o dever de cortar-lhe o pescoço para terminar com sua dor, dando-lhe o golpe de misericórdia.
Muitos suicídios samurai eram de fato o equivalente moral da eutanásia. As razões para o suicídio do samurai eram:
evitar a morte inevitável por mãos de outros;
escapar de um período mais prolongado de dor insuportável ou de sofrimento psicológico, pois não podiam continuar a ser membros ativos e úteis para a sociedade.
São justamente estas as situações em que atualmente se deseja a eutanásia:
para evitar uma morte inevitável por mãos de outros;
para evitar um longo período de dor ou de sofrimento, por não poder ser mais um membro ativo e útil para a sociedade.
Persiste, hoje, uma pergunta importante para os budistas: existe diferença entre o suicídio e a eutanásia? Uma diferença essencial é saber se a pessoa sujeita à eutanásia está consciente. Neste caso, a não ser que tenha feito um testamento em vida (living will), não temos como saber se o paciente quer de fato a eutanásia. Por outro lado, uma vez que a consciência se dissociou permanentemente do corpo, o budismo não vê razão para continuar nutrindo ou estimulando o corpo, que não é mais uma pessoa.
Marco legal da eutanásia no Japão
Um dos mais importantes precedentes legais relacionado às questões da morte e do morrer até o momento nunca foi aplicado desde seu estabelecimento em 1962. O caso é usualmente citado como sendo a “Decisão da Corte Suprema de Nagoya de 1962”. Diz respeito a um jovem que atendendo ao pedido do pai em estado terminal, para poupá-lo da dor e sofrimento, lhe preparou leite envenenado para beber. Este jovem incentivou sua mãe, que não sabia que o leite estava envenenado, a administrá-lo ao marido. No julgamento, a corte identificou seis condições que devem ser preenchidas para se ter permissão legal para a prática da eutanásia:
a enfermidade é considerada terminal e incurável pela medicina atual e a morte é iminente;
o paciente deve estar sofrendo de uma dor intolerável, que não pode ser aliviada;
o ato de matar deve ser executado com o objetivo de aliviar a dor do paciente;
o ato deve ser executado somente se o próprio paciente fez um pedido explícito;
cabe ao médico realizar a eutanásia; caso isto não seja possível, em situações especiais será permitido receber assistência de outra pessoa;
a eutanásia deve ser realizada utilizando-se métodos eticamente aceitáveis (22 December 1962, Nagoya Court, Collected Criminal Cases At High Court, vol.15, n. 9, p. 674).
Se essas condições forem cumpridas, parece não haver razão moral para se opor à prática da eutanásia. Nesse caso, a Suprema Corte de Nagoya decidiu que os quatro primeiros critérios foram honrados, mas os dois últimos não. O jovem foi condenado a quatro anos de prisão. O código penal japonês prevê punições severas, pena de morte ou prisão perpétua, para o homicídio de ascendentes; contudo, no caso específico, a Corte sentiu que o desejo de honrar seu dever filial de seguir as diretrizes verbalizadas pelo pai era evidente, e aplicou-lhe uma sentença mais leve.
À luz dos avanços médicos e tecnológicos, as decorrências da decisão da Corte Suprema de Nagoya mudaram de muitas maneiras. Doenças antes consideradas fatais, agora podem ser efetivamente tratadas ou curadas. Foram desenvolvidos métodos mais eficazes de controle da dor; cerca de 25 hospitais mantêm unidades de cuidados paliativos, incluindo hospices, que são oficialmente reconhecidos no Japão desde 1990 (8).
Utilização de drogas para aliviar a dor
Outra questão é a relação entre as drogas que suprimem a dor e o prolongamento da vida e a aceleração da própria morte. A Associação para a Morte com Dignidade, do Japão, sugere a administração das drogas que suprimem a dor, mesmo que acelerem a morte do paciente. Os budistas concordam com o seguinte: é desejável o alívio da dor e a questão primordial não é se a morte é acelerada ou não. No caso em que a dor seja extrema e só drogas fortíssimas poderiam suprimi-la, teríamos que decidir entre:
não fazer qualquer tratamento;
administrar drogas contra a dor que só turvam ou confundem a mente do paciente;
aplicar um tratamento que acelere o fim, mantendo lúcida a mente.
Nessa situação, o budista preferiria a primeira, a via mais natural: não tentar qualquer tratamento. Caso a mente do paciente seja incapaz de concentrar-se ou de estar em paz por causa da dor, o budista escolheria a alternativa c antes de b, porque a lucidez de consciência no momento da morte é muito importante para o budismo.
Os médicos que não gostam da idéia de interromper a vida de uma pessoa prefeririam prolongar os processos biológicos físicos da vida, sem se preocupar com a qualidade mental dessa vida. É justamente nesse ponto que os budistas estão em desacordo com a medicina ocidental materialista. Mas não é necessária a existência de conflito entre o budismo e a medicina. Não há razão para atribuir ao médico a “responsabilidade” da morte do paciente. Segundo as diretrizes da Corte Suprema de Nagoya, os pacientes potencialmente elegíveis para a eutanásia morreriam de qualquer forma em pouco tempo, e o médico não tem culpa alguma.
O que importa para os budistas é conceder ou não à pessoa a responsabilidade por sua vida e destino. Toda a tradição budista, e em particular a do suicídio no Japão, valoriza sobremaneira a decisão pessoal quanto ao tempo e a forma de morrer. Tudo que os outros fizerem para obscurecer a mente de quem está morrendo ou para impedi-lo de fazer a escolha, constitui uma violação de princípios budistas (5).
Resumindo, a perspectiva budista em relação à eutanásia é: no budismo, embora a vida seja preciosa, não é considerada divina, pois não existe a crença em um ser supremo ou deus criador. No capítulo dos valores básicos do budismo, além da sabedoria e preocupação moral , que andam juntas, existe o valor básico da vida, que diz respeito não somente aos seres humanos, como é comum nas outras religiões mundiais, mas inclui também a vida animal e até mesmo os insetos. A crença no Karma e renascimento tem uma profunda influência na atitude budista em relação à natureza vivente. É o que faz com que os budistas não tenham uma separação entre vida humana e outras formas de vida.
Muitos budistas japoneses acreditam que a diminuição gradual do calor corporal deve ser sentida no processo do morrer, e que apressar isso e remover órgãos de um corpo ainda quente não é um fim de vida esperado. A resistência em apressar a morte e remoção de órgãos deriva da imagem tradicional que vê os seres humanos como unidades completamente integradas mente e corpo, antes que distintas e separadas unidades de mente, corpo e espírito. Essa unidade continua após a morte e, assim, a remoção de um órgão do corpo quebra esta unidade espírito-corpo – o que explica porque as autópsias não são populares no Japão.
Grande ênfase é dada ao estado de consciência e paz no momento da morte. Não existe uma oposição ferrenha à eutanásia ativa e passiva, que podem ser aplicadas em determinadas circunstâncias.