Entrega à prática

Entrega à prática

Desde os tempos de Buda aconteceu uma espécie de entrega à prática. Quando Buda obteve a iluminação embaixo da árvore Bodhi, ele foi até a beira do rio e como não tinha roupas, pegou retalhos de mortalhas, tecidos rejeitados, recortou os pedaços que ainda eram aproveitáveis, lavou-os, tingiu-os, algumas histórias dizem que com açafrão, outras dizem que com argila, de modo que temos as cores dos mantos variando entre marrom e amarelo, e costurou-os fazendo desta forma seu manto. Por isso o manto dos monges é feito até hoje de retalhos.
Neste momento Buda sofreu uma grande dúvida e, a história mítica conta como se ele fora tentado a ficar com sua descoberta para si mesmo, não ensinar ninguém e não transmitir a ninguém o que ele havia descoberto, porque as pessoas não iriam aceitar, algumas pessoas provavelmente iriam rir dele e isso seria inútil e sem sentido. A história lendária diz que o próprio Deus Brahma, Deus do Hinduísmo, desceu dos céus e lhe implorou que ensinasse as pessoas. Esse mito tem a ver com um sentimento comum entre nós, todas as vezes que ficamos à beira de uma grande coisa, temos dúvidas e essas dúvidas trazem junto consigo nosso passado, as nossas piores partes, nossa preguiça, nosso medo, assim como aconteceu com Buda, o medo de sermos imperfeitos, o medo das responsabilidades.
A primeira vez que vesti meu manto foi em 2001 e pedi ao meu primeiro professor, eu lhe disse que me sentia insatisfeito e perdido com a vida de executivo, trabalhava demais e viajava muito, mais de duzentas viagens de avião por ano, estava muito cansado daquela vida e pensei que seria uma saída me tornar Monge, então pedi a ele. Então ele riu de mim e disse: “Você quer se tornar Monge porque viaja demais, está cansado, tem que correr atrás de dinheiro. Mas acontece que como um Monge eu faço as mesmas coisas, então, você não precisa se tornar Monge”.
Uma vez um amigo que viajava comigo em consultorias me ouviu falar sobre o Zen e me pediu que o ensinasse a fazer meditação. Na mesma noite ele bateu à minha porta no quarto do hotel, me pediu para ensiná-lo e já trazia um cobertor enrolado embaixo do braço. Organizamos depois disso uma Sangha em Porto Alegre. Após um ano mais ou menos, eu fui ao Rio de Janeiro e disse ao meu Mestre: “temos um grupo, estamos sentando sempre, tenho meu Rakusu, será que não seria melhor eu me tornar Monge?” Ele riu de mim – “peça de novo ano que vem”. Então continuamos praticando, construímos em um estacionamento um Zendo, mas passávamos muito calor, pois o teto não tinha isolamento, havia sido feito para carros, mas aprendemos que dá para sentar com o suor pingando.  No fim desse ano ele me ligou e perguntou se meu grupo ainda existia e disse que faria uma visita. Me lembro bem que depois de ver vinte pessoas sentando para praticar, ele sentou-se em um toco de árvore na beira da calçada e ficou olhando o céu e dias depois me disse, “costure suas roupas de monge”.
Então, peguei o endereço do um pai de uma Monja que costurava roupas. Mandei então minhas medidas e ele costurou. Quando chegou a roupa eu coloquei em cima da cama e senti uma sensação horrível. A sensação era de estar à beira de um abismo – “onde estou me metendo, o que irá acontecer”? Minha vida toda irá mudar por causa disso. Mas eu não podia mais retornar, já havia feito a escolha. Eu sentia o medo e o risco de ver aquelas roupas e só posso supor que Buda também tenha pensado assim logo após sua iluminação – “Se costurar um manto e sair para ensinar, toda minha vida mudará”. Embora façamos nossos votos para nós, esses são para nós mesmos, não para os outros, não são para mostrar ou exibir. Muito leigos na nossa Sangha já costuraram seus Rakusus, cujo único significado é, fiz meus votos, costurei minha miniatura do manto de Buda e recebi um nome. Mas qualquer um pode pegar seu Rakusu e queimar, pode não vir mais à Sangha, não participar mais de retiros, pode fazer o que quiser, pois os votos são seus. O Monge também pode tirar o manto e dizer: “não sou mais monge”. Ninguém dirá nada, não existe nenhum tipo de protesto ou castigo, uma excomunhão ou coisas desse tipo. Buda não pôde evitar, fez seu manto, encontrou seus companheiros e não conseguiu evitar fazer seu primeiro sermão sobre “As Quatro Nobres Verdades”. Deste dia em diante, ele ensinou por quarenta anos e milhares de pessoas o seguiram.
Quando ainda jovem, professores mais velhos com centenas de alunos o ouviam e lhe pediam para serem seus discípulos. Foi o que aconteceu com Shariputra, que já era um Mestre conhecido. Então, qual o sentido de fazer votos e colocar um Rakusu? O sentido é prometer coisas do tipo: “prometo não matar, não roubar, não enganar, não usar substâncias que alterem a consciência, não usar sua sexualidade sem respeito e responsabilidade, não me elevar rebaixando os outros, fazer o bem, evitar o mal”, tudo o que, na realidade, as pessoas gostariam de prometer e, se prometessem e cumprissem, o mundo seria maravilhoso, seria um mundo perfeito, ou quase.
Então eu me pergunto: por quê, naquele momento, quando olhei as roupas, eu pensei que fosse um abismo? Mas não foi um abismo, foi uma bênção. Se eu olhasse para a minha vida e tirasse o budismo, o que eu seria? Estaria trabalhando somente para ganhar dinheiro, comeria, dormiria, acordaria, tudo isso todos os dias, até o dia de minha morte e sem ter feito nada de significativo. O que eu faço de melhor, é isso, é isso que dá sentido à minha vida.