Pergunta: O senhor pode comentar essa ideia de continuar, de ser eterno?
Monge Genshô: Nós temos esse grande desejo de eternidade, eu sempre falo que as religiões surgiram por causa disso, porque elas querem dar essa noção de que você continua. Por isso existem várias diferentes ideias. Muitas pessoas pensam que o budismo é reencarnacionista e não é. O budismo fala em continuidade, mas é do carma e não do eu. Não há um eu para ganhar uma carne nova e um corpo novo. O budismo não é milenarista achando que a Terra vai ser renovada, que os mortos ressurgirão e virão de novo num mundo paradisíaco. Lembram ontem quando falei da ideia de paraíso? Voltaire foi um que disse que a humanidade sempre se refere à idade de ouro como sendo a anterior. E cada idade de ouro se refere a uma idade de ouro anterior. Sempre olhamos para o passado pensando que ele é maravilhoso. Quanto mais você estuda e lê, mais fica aterrado com o fato de que o passado não foi maravilhoso e sim muito pior. Quando nós vemos a conduta dos homens do passado ficamos chocados com o quanto foram capazes de fazer para conquistar ouro e tudo mais. Vemos ainda hoje pessoas no Oriente Médio queimando bibliotecas, destruindo templos e essas coisas. O Parthenon, na Grécia, explodiu porque foi transformado num depósito de pólvora, imaginem hoje, desconsiderando fanáticos, se alguém transformaria em depósito de pólvora uma obra de arte daquelas. Quando olhamos os castigos e o que as pessoas faziam, percebemos que nosso mundo melhorou muito. Hoje as pessoas se comovem com coisas que antes eram completamente ignoradas.
Há pouco tempo li a história de Fernão de Magalhães, que tentou dar a volta ao mundo e descobriu o Estreito de Magalhães, aqui na América do Sul. Ele mandou matar pessoas que se revoltaram contra ele no navio, por um método que era pendurar a pessoa, abrir sua barriga e queimar o intestino com a pessoa ainda viva. Existem vários métodos tão agressivos quanto esse. No caso de Fernão de Magalhães, ele não chegou a dar a volta, morreu numa ilha do Oceano Pacífico tentando converter os nativos ao cristianismo. Mas parece que os nativos não gostaram e ele morreu durante uma batalha. Dos 160 homens que saíram com ele da Espanha, voltaram 18 e esse era o mundo de 500 anos atrás. Há 100 anos, no Brasil, nós tivemos a Revolta da Chibata, quando os marinheiros brasileiros que queriam abolir o castigo de serem chicoteados se revoltaram. É concebível hoje que alguém seja chicoteado? Para nós não. Agora já tem gente fazendo movimento até para salvar os cães. Mas isso acontece devagar. Esses dias fizeram um para salvar porcos que iam para o matadouro, mas depois disso todo mundo senta e come presunto. Mas o caso é que os porcos estavam vivos e foram filmados. Houve grande revolta. Nos revoltamos com aquilo que enxergamos, mas depois sentamos à mesa e comemos presunto. Um pouco ridículo. Essa atitude é tola. Nós temos pena de um certo tipo de animal, mas de outro não. Então o aumento de consciência é lento.
Nossa consciência compassiva consegue se comover com uma criança morta na praia, porque foi fotografada. Milhares de mortes já ocorreram lá, mas como não foram fotografadas não se criou comoção. Então o grande herói não é a pessoa que morreu ou seus familiares, mas aquele que expôs o fato. De repente você vê alguém como você, como seu filho e então você se mobiliza. Tudo isso para dizer que a humanidade vem criando consciência, mas aos poucos. No contexto de 500 anos atrás, ou mesmo de 100 anos, as mudanças foram muito grandes. Essas mudanças exigem outras que fazem você refletir por qual motivo se comove com esse e não com aquele, com essa raça e não com aquela, há grande questionamentos éticos surgindo. Isso acontece porque nós ficamos ricos, porque nós podemos sentar à mesa e porque há comida abundante, quando não tínhamos não dava para fazer esses questionamentos. Coloquemos todos nós aqui numa floresta e mais nada. Sem agricultura, sem supermercado, os que forem capazes de caçar vão sobreviver e os outros não. Se a situação ficar bem aguda mesmo, vamos acabar comendo uns aos outros. Essa é a história humana.