Pergunta: Sensei, nós poderíamos dizer que a manifestação cármica humana é uma das que mais nos afasta dessa verdadeira natureza, dessa nossa mente?
Monge Genshō: ela tem dois lados. Em primeiro lugar, ela nos afasta porque a nossa percepção de consciência é maior, do outro lado ela é a única que nos permite sair, justamente porque nós temos a percepção do sofrimento, da felicidade e das opções.
O pássaro que voa no céu não está preocupado com a mente infinita, ele é a própria expressão da mente infinita, para ele está tudo bem. Ele não pensa na sua própria morte ou nascimento, ele só opera. O homem não, o homem tem uma consciência angustiante do porvir, mas essa consciência angustiante tem um lado que primeiro nos afasta da percepção da mente infinita, e também tem um outro lado que nos permite escapar do nosso ciclo de manifestações.
Então, é um grande privilégio ser um ser humano, mas, entre os seres humanos, aqueles que despertam são muito raros. A maioria dos seres humanos simplesmente transita pela Terra como fantasmas. Esses fantasmas perdidos não sabem o que estão fazendo.
Dando um exemplo sobre isso: você lança um anzol no mar e pesca um peixe, o anzol fere a boca dele, arranca um olho e você o acaba matando. Você causa sofrimento e dor. Mas uma gaivota quando pesca também mata, mas você não vai até as gaivotas e diz para elas: “pare de pescar, você não vê o sofrimento que está causando?”. Ela não vê mesmo, a gaivota não raciocina assim, não pensa assim. Como ela age sem esta consciência, tudo está bem para ela, mas para um homem o problema está em quando ele toma consciência. Quando você faz algo assim, vê e se apieda, sente a dor do peixe, de modo que fica difícil para você fazer isso. A maioria das pessoas hoje funciona assim.
Você quer comer bacon? Tudo bem, está aqui uma faca, pegue esse porquinho, pode ir ali e sangrá-lo. Se isso é oferecido, a maioria das pessoas diz que não vai fazer, que não vai sangrar o porco. É necessário se embrutecer para fazer algo assim. Precisa ser educado para fazer, uma criança no início não quer, mas se o pai diz que tem que fazer, ensina, etc., então pode acabar fazendo. Pensem nisso, é a nossa comida, sem isso não vai ter presunto, bacon, etc. Então, tem dois lados: um lado da consciência e o lado do agir natural. O agir natural é assim, mata, mas mata sem pensar, como a gaivota. Quando o homem começa a adquirir consciência é que começa o problema, porque o que acontece é que nós homens estamos nos transformando em outros seres.
Há milhares de anos começamos a ter consciência, cada vez mais aguda. E já no tempo de Buda havia essa consciência a respeito do sofrimento que você causa a outros seres. Então o ser humano começou a se transformar, você está se transformando em outro ser, você não é mais o ser humano anterior, você é um outro. Você não é mais o Homo Sapiens, talvez seja o Homo Compassivus, outra coisa. Então, esse outro ser não pode agir como o ser anterior.
Nós não criamos regras para isso no budismo, mas nós fazemos treinamentos pautados nisso. Quando você vem ao Sesshin e não é servido nada que cause sofrimento, então você come sem esse elemento, não come carne, é uma alimentação vegetariana. Não é completamente sem sofrimento, porque quando você cultiva arroz, você está causando sofrimento também, mas você diminui, minimiza o máximo que você pode o sofrimento, porque você se importou com esse aspecto. Isso faz parte da nossa prática. Já que há um aumento de consciência, então o desperdício é reduzido ao mínimo. Por isso, tentamos não poluir, tentamos não dar serviço aos outros, na hora da refeição limpamos tudo. Isso tudo é demonstração de que me importo, e, se eu me importo, então me preocupo com as repercussões do que eu faço. Esse é o treinamento budista e ele está focado nisso.
O treinamento budista não é para obter bênçãos divinas e sim para termos consideração pelos outros seres, para termos consciência do sofrimento que nós causamos pelo simples fato de existirmos. É isso. Então, é outro tipo de ser humano que é formado. Não se trata de ser natural ou não. Do ponto de vista natural ou físico, não tem nada demais matar e comer.
Eu estava vendo um documentário sobre o cerco a Leningrado. No cerco a Leningrado houve vários casos de canibalismo, porque durou 900 dias e a cidade estava cercada, de modo que não havia comida. As pessoas comiam terra, a terra que estava embaixo dos depósitos era vendida, terra onde havia pingado óleo de gergelim ou que estava embaixo de barris de arenques e ficaram perfumadas com o cheiro dos arenques. Essas pessoas passaram uma fome inimaginável, a temperatura era muito baixa e as pessoas andavam como fantasmas cambaleantes nas ruas e caíam mortas de fome. Começaram a saquear os cemitérios, e a providência que se tomou foi qualificar como crime o canibalismo. Então surgiram centenas e centenas de casos de pessoas presas porque estavam carregando pedaços de corpos humanos, mas, naquela fome, se alguém colocava carne em cima da mesa, ninguém perguntava de onde tinha vindo.
Era uma cidade bombardeada, então sempre tem cadáver de ontem, todos os dias havia mortes. E agora, nós perguntaríamos assim: mas é natural ou não natural? Foi qualificado como crime, mas pensar isso é absurdo, porque na realidade era natural. Tendo grande fome, o canibalismo é natural. A humanidade sempre fez esse tipo de ação, era só um horror civilizado em relação ao que estava acontecendo. Então o aumento de consciência vai levando progressivamente a pensamentos mais sofisticados também da nossa parte.
[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]