A desconstrução do eu

A desconstrução do eu

 

Pergunta: A prática diária que se faz no mosteiro, além do trabalho, representa uma vantagem dos japoneses com relação a nós? Ter desde sempre influências budistas, como na arte, por exemplo, faz alguma diferença?

Monge Genshô: Existe uma influência importante nas artes, mas isso não substitui a prática do Zen e também não substitui o conhecimento do ensinamento. Eu diria que nossos alunos aqui no Brasil fazem mais meditação e sabem mais sobre o budismo do que os leigos budistas japoneses. Eles estão acostumados com o folclore do budismo e isso ajuda no comportamento. Eles sabem desde pequenos, por exemplo, como se comportar junto ao professor, junto com senpai e eles têm  orgulho de ter um senpai durão. Aqui no Brasil ninguém suporta um professor durão. Quando começa a dureza, o aluno acha que não é mais amado. No Japão a interpretação é outra, é contrária. Se ele é duro é porque ele está investindo em mim e se importa, se ele para de me corrigir é porque ele desistiu de mim e eu não presto, então é melhor eu ir embora. Esse é o raciocínio. Aqui nós queremos ser amados o tempo todo, é por isso que lá ainda, nos monastérios masculinos pelo menos, existem muitos castigos físicos. Se cometeu um erro, o superior logo vem para corrigir e você tem que ouvir de joelhos, não é em posição de seiza, é ajoelhado, dizendo “hai”, sem olhar no rosto, apenas olhando para baixo. O superior pode sair dali e você continua, só sai da posição quando ele voltar e liberar.

Quando eu fui entrar em Sojiji Soin me colocaram de frente para uma porta. Era início de primavera, estava frio e eu com roupas que não protegem bem, calçando sandália de palha e segurando um zafu embaixo do braço. Veio um Monge e perguntou: “por que você veio para cá? Aqui é um mosteiro japonês tradicional”, e eu disse: “ah, porque eu queria um treinamento duro”. Ele me disse: “se você quer um treinamento duro, vou te dar um treinamento duro então!”, e foi embora. Ele me deixou lá. Fiquei com frio, congelando e não podia fazer nada. Fiquei pensando: “que besteira minha, por que fui dizer isso?”, mas não tinha saída. De qualquer jeito eu ficaria de castigo. E vocês veem que eu contando isso agora parece legal, nós rimos, o que é ruim de passar é bom de contar. O que é bom de passar não tem graça. Então o treinamento monástico tem muito disso no Japão, ele te desconsidera, diz que você não é ninguém e te reduz a nada. Mas tudo com o objetivo de apagar esse ego. Não interessa se vim do Brasil, se tenho quase 70 anos, idade não conta e o que eu fazia aqui não interessa lá. Ali sou pessoa nova, não sei de nada, não usei meu manto, usei manto preto porque lá eu era noviço. Então todo o processo é criado com a intenção de destruir tudo que você pensa que é. Você não é o que você pensa. Você é ninguém. Depois disso você é levado para uma sala de espera que possui apenas nove tatames e trazem as refeições para você. Lá não há banho, só tem um sanitário perto e tudo que você tem é confiscado. Nessa sala você fica sem nada para fazer, só uma pessoa vem falar com você, seu instrutor, cada vez que ele abre a porta você faz gasshô. Ele dá textos e refeições, vai embora e novamente você se despede com gasshô. Você fica ali esperando. Cinco dias. É interessante para descobrir o que sente alguém numa cela sem nada para fazer e sem contato com o exterior.

Pergunta: Ficava fazendo zazen?

Monge Genshô:
Sim, você tem o zafu. Esse processo pretende fazer com que se você for desistir, desista naquele momento. Você tem que estar armado de muita motivação para continuar. É inevitável que chegue um momento em que você diz: “eu estou com vontade de desistir” e então o superior pergunta: “como você vai embora? Eu estou com seu passaporte, seus documentos, vai como e para onde?”.