O rosto original | Monge Genshô

O rosto original | Monge Genshô

(…) Quando Keisan fala “mostra o seu próprio rosto original” é como lembra um famoso koan: “mostra-me o teu rosto antes dos teus pais terem nascido”. Nós estamos confundidos com nossa individualidade, pensamos que nós somos um eu, mas este eu é uma ilusão, uma construção da consciência desta manifestação. Nosso rosto original está aqui na floresta. A própria vida é o nosso rosto original. Não existe um rosto que eu possa mostrar antes dos meus pais terem nascido. 

Keizan continua: “Se alguém abandonou o corpo e o espírito e carece de apegos já está sentado e se encontrou.”. Vejam que quando nós falamos “libertou-se dos apegos”, os apegos todos tem uma única referência, eu me apego em algo para mim, é meu apego, ele está referenciado ao eu. É com o apego que eu me apego às pessoas, às coisas e é com os apegos que eu sofro. Porque ou eu desejo algo ou eu tenho medo de perder algo. O desapego permite libertar-se de todos os sofrimentos ligados ao eu porque não há nada que você queira reter ou agarrar desde que você entenda plenamente a impermanência e a vacuidade do seu eu, ou seja, que o seu eu é uma construção ilusória sustentada pela sua memória. 

Você só tem a impressão de quem é porque lembra o seu passado, o seu currículo, a sua trajetória, tudo o que aconteceu, lembra do seu nome. Quem não tem memória não sabe quem é e está livre de todo o passado, não é mesmo? Vocês tiveram uma grande oportunidade, porque nasceram e não lembram nada do passado. Sofrem as consequências de karma passado, mas não lembram. Pelo menos disso se livraram. Agora, para nos livrarmos de todos os nossos apegos, nós temos que descartar essa noção de eu, de meu corpo, meu espírito.

Ainda no texto de Keizan: “Não pensando mais no bem e nem no mal e assim pode transcender profano e sagrado; ir mais longe de toda a concepção de ilusão e de despertar; e libertar-se de toda a ideia de fronteira entre os seres sensíveis e os Buddhas”. Quando ele diz “transcender o profano e o sagrado”, podemos nos referenciar à resposta do Bodhidharma ao imperador Wu, que o pergunta qual é a sagrada doutrina e Bodhidharma responde que nada pode ser chamado de sagrado porque na verdade se tudo é sagrado – se essas pedras, esses musgos, essas árvores, se tudo é sagrado – nada é sagrado também, tudo é profano. Essa noção é uma noção de divisão entre sagrado e profano. 

A mesma coisa pode ser dita sobre ilusão e despertar. Se você ainda pensa que tem ilusão e que precisa despertar, ainda está preso numa dualidade. Se você se liberta dela, não busca o despertar porque isso é o que Dōgen tentou dizer ao falar “sentar-se já é o despertar”. Não busque o despertar, só sente. Se você ambicionar alguma coisa, ou se sentir frustrado porque não consegue uma realização espiritual é porque você é ambicioso, você tem uma ambição e um ego, você deseja aquilo. Vejam que é justamente o ego que está ligado ao orgulho e à vaidade. Nós queremos alcançar algo que vai nos destacar, seremos diferentes dos outros, coitados, aqueles que não despertaram. Então querer despertar é um obstáculo para despertar. 

Por outro lado, se você quiser escapar de todos os sofrimentos, tem que despertar. Então o sofrimento é um bom incentivo, mas se você se sentar mergulhado numa ambição, isso vai atrapalhar você. Agora se você se sentar sem saber por que se senta ou simplesmente trabalha pela comunidade, para os outros e simplesmente se senta para fazer zazen então o kenshō pode surgir. Mas quando você quiser agarrar o kenshō , o simples ato de querer fará com que ele desapareça. Se você se der conta “Ah! Kenshō, consegui!”. Puf! Ele sumirá como uma bolha de sabão. Não é possível obter o kenshō querendo agarrar o kenshō. Essa é a dificuldade sutil do despertar.

Trecho da Palestra proferida por Meihô Genshô Sensei, Pirenópolis-GO, outubro/2018.