Se nós deixamos a nossa mente mergulhar em apegos e aversões, é fácil que surja o chamado “pior veneno da mente”, que é a raiva, e a raiva toma conta completamente da mente, inteiramente, sem deixar espaço para mais nada, nem para o pensamento racional. A raiva ocupa todo o cérebro, e a pessoa age de forma não racional. Então, no budismo, tradicionalmente dizemos que a raiva é o pior veneno da mente. É assim inclusive nos preceitos: existe um preceito em que você pergunta se o aluno promete não se deixar levar pela raiva, e ele promete: “sim, prometo”.
Esses obstáculos vão atravancando todo o caminho para o despertar, tudo que você pensar da vida, mil coisas que nós podemos dizer, acontecimentos, palavras ditas, memórias, tudo isso vai atravancando toda a sua capacidade de chegar a ter clareza, ver com lucidez o que está acontecendo e não se deixar envolver por esses sentimentos. Mesmo quando os outros estão envolvidos, são levados por sentimentos turbulentos, perturbadores e tudo mais, nós temos que ficar fora desse movimento e a não ação é, talvez, a melhor coisa que você pode fazer, porque a não ação não combate, não se opõe e não dá alimento para a fogueira da raiva que o outro tem. A gente não sabe muito bem o que ocorre na mente dos outros. Um exemplo disso é uma história de um homem que encontrei num posto de gasolina e que queria brigar comigo. Eu não gosto de contar muito essa história porque eu começo a contar e depois eu me emociono.
Eu entrei num posto de gasolina e um homem entrou do outro lado, eu nem era monge ainda, mas tinha feito zazen naquele dia de manhã. Ele desceu do carro furioso para brigar e eu pensei: “ele vai chegar aqui e vai me bater pela janela do carro”. Para isso não acontecer dessa forma, eu abri a porta do carro e saí. Naquela época ainda eu praticava karatê, e então saí do carro, olhei para ele e disse: “fique calmo, eu tiro o meu carro”. Então ele baixou os braços, eu entrei no carro e o tirei de lá. Eu pensei: “que coisa perturbadora, eu acabo de fazer zazen e agora tenho a adrenalina desse encontro”, por pouco já ia me envolver numa luta a socos. Saí do carro estacionado em outro lugar e fui até o carro dele, cheguei pelo lado da porta e disse: “vamos transformar isso numa coisa boa”, e entreguei para ele meu cartão, me apresentando. Então ele desabou, passou toda aquela sensação de raiva anterior e ele me apertou a mão gentilmente.
Voltei para o meu carro e, passado algum tempo, veio ele em minha direção, abriu os braços e disse: “eu não sou assim, minha família não aguenta mais, o senhor vê, eu tinha um filho que morreu semana passada”. As pessoas no posto estavam olhando, incrédulas, porque haviam visto pouco tempo atrás dois homens quase brigando, e agora via esses mesmos homens se abraçando emocionados. Sempre que conto essa história me emociono. O fato é que a história terminou com nós dois abraçados, e o pessoal todo olhando em volta, achando que éramos loucos, porque não tinham ouvido o diálogo. Esse homem chamava-se Flávio, tornou-se meu amigo e quando acontecia alguma coisa na vida dele, ele me ligava.
A lição que a história tem é a seguinte: nós não sabemos o que se passa na mente e na vida das outras pessoas e que coisas elas têm dentro delas, que sentimentos, que marcas da infância, que consequências cármicas que talvez elas nem saibam, que fazem as pessoas agirem como agem. Nós não sabemos. Nessa história eu fiquei sabendo em um minuto sobre a vida dele, e naturalmente pude perdoá-lo instantaneamente, de maneira muito fácil, porque realmente compreendi. O que nos impede de ter lucidez e enxergar com clareza são esses sentimentos turbulentos, que levam a reações perturbadas. Isso pode causar grandes tragédias, pode fazer com que as pessoas saiam para a rua e briguem por motivo qualquer, que matem e destruam suas vidas. Quantos acontecimentos assim ocorrem todos os dias? Nós não sabemos o que está por trás, e, por isso, se você pensar o que é a essência dessa história, se você pensar “eu não sei o que está por trás”, pode ajudar. Ontem estávamos no carro e alguém buzinou atrás, lembram? E eu disse: “Pode ser alguém com um filho doente”. A gente não sabe, pode ser isso. Como você não sabe nada mais profundo sobre os motivos internos dos outros, nós não podemos julgar com facilidade suas loucuras. Tudo o que podem dizer é loucura, é um ato sem sentido, é um ato louco, um ato impensado, é uma fantasia mental, é qualquer coisa, mas nós não sabemos, mas se pensarmos isso fica mais fácil compadecer-se, fica mais fácil perdoar.
(Continua)