P. Quer dizer que somente o nosso consciente faria parte do fluxo do meio. A única preocupação que eu deva ter é lapidar, não posso lapidar o meio, mas eu tenho que participar dele e respeitá-lo, respeitar o fluxo do meio.
Monge Genshô: O que você pode alterar é o seu canal de interpretação, o seu programa, nós já temos os sentidos, os olhos, os ouvidos, nós percebemos o mundo em volta mas tudo isto é interpretado por programas cerebrais. Estes programas que nós temos na nossa mente são influenciados pelos nossos hormônios, eles nos dão mensagens e reagem de determinadas maneiras que nos estão incutidas pela nossa própria formação biológica, pela nossa cultura, por tudo que nós aprendemos. A questão é quão verdadeira é a nossa interpretação desse mundo através destes sentidos, não é? Nós olhamos uma fruta vermelha numa árvore e sabemos que ela está madura, não só nós, os macacos também sabem, isto está embutido na nossa programação há milhões de anos e nós gostamos da cor vermelha no meio do verde e quando nós vamos ao supermercado as embalagens são vermelhas, amarelas, de cores quentes porque elas usam este condicionamento que nós temos de nos sentirmos atraídos pelas cores que significam comida madura e doce, temos todos estes condicionamentos dentro das nossas mentes e tudo isto nos impede de ver a realidade tal como ela é. É útil isso? Sim, é útil, serve para nossa operação no mundo, assim como nosso corpo serve para nossa operação no mundo, mas a clareza da mente original não é esta interpretação condicionada. Ela está além disto, quem está sentado aqui pode ouvir a cigarra e pensar ah, eu associo as cigarras com o natal e daí o som das cigarras me faz feliz, e outra pessoa, eu associo cigarras com insônia, com uma experiência desagradável que eu tive numa fazenda onde eu fiquei e aquelas cigarras me incomodavam e quando ouve cigarras se sente incomodado, onde está esta interpretação? O som em si não está na mente, só a interpretação.
P. Voltando um pouco, aceitar o outro é fácil, o problema está em a gente se aceitar…
R. Acho que são dois problemas, não é? Sartre escreveu uma frase famosa que era: o inferno são os outros. É uma frase do existencialismo. E do outro lado também nós olhamos para nós mesmos e sentimos coisas assim e às vezes para escapar da própria vida tem gente que se suicida, se mata, não aceitação extrema, e às vezes a não aceitação do outro leva a que? Ao crime, a morte do outro etc. Ora, a questão é que estas aceitações em si não são diferentes, tanto faz os outros ou eu porque esta distinção também é uma distinção falsa e ela só existe porque nós acreditamos nesta individualidade e é por isto que a gente sofre tanto com a perspectiva da morte porque nós acreditamos que isto é o fim de uma coisa preciosa que é a nossa individualidade. Imaginem cada um de vocês no seu leito de morte, pensem um pouco, estou ali e vou morrer. Esta perspectiva nunca parece agradável e a humanidade tenta arranjar alguma fantasia para escapar disso e estamos cheios de fantasias nas nossas culturas para escapar desta realidade da morte. A principal delas é a existência de uma alma que sobreviva a morte e que seja eu mesmo e que este corpo seja só uma casca e aí então está tudo solucionado porque eu passo a ser eterno e só morre o corpo e não tem problema ou eu ganho um outro corpo novinho em folha sem os problemas deste aqui que já envelheceu, mas eu continuo, sou preservado. Esta maneira de pensar é nada mais do que uma tentativa de escapar da realidade. O Budismo não olha as coisas assim, ele diz , não é isto, não é a morte que é um problema, é o nascimento que é um problema. Na verdade esta realidade última que nós estamos procurando encontrar na meditação está além de nascimento e morte porque se penetrarmos nesta realidade última, nesta natureza original não existe nascimento e morte, nem tempo, e tudo isto que nós estamos olhando aqui agora e queremos conservar, essa existênciazinha e este euzinho é apenas uma bolha, manifestação da realidade última. Nesta natureza original não existe isto. Penetrar na natureza original é tornar-se, em outros termos, a própria divindade, a própria vacuidade, além de tempo, além de espaço, além de início, além de fim e é por isso que quando a gente ouve isso pode entender claramente como é verdadeiro, porque não tem engano, não tem nenhum truque de dizer eu vou sobreviver a esta morte com a alma e o espírito, ir para o céu, o paraíso ou o inferno ou qualquer coisa assim, não é nada disto, a natureza original está além da própria existência deste universo tal como nós o vemos, tal como ele se manifesta. A nossa natureza original é ela que manifesta este universo e é isto que na realidade nós somos e sendo assim não há nascimento nem morte.