(continuação)
Por que o zen se tornou tão paradoxal e com tantas declarações absurdas, sob o foco da lógica comum? Exatamente por isso que estou explicando. Pela dificuldade em dar atributos a algo que só pode ser experimentado diretamente e que não pode ser transmitido através das palavras. Isso exige parênteses: nós dizemos que o Zen está além dos textos e dos ensinamentos, que é uma experiência direta, justamente por causa disso que estou dizendo. Por isso você tem que se calar e sentar-se para meditar a fim de ter uma experiência real. No entanto, nós damos ensinamentos no Zen e provavelmente, de todas as Escolas Budistas, é a que mais tem livros publicados.
Porque é assim? Da mesma forma, porque a única maneira de fazer com que alguém tente se aprofundar nessa experiência é explicando algo, mas essa explicação não é a experiência, é apenas um dedo que aponta para a experiência, mas não é a experiência em si. A experiência em si é intransmissível. Portanto, os ensinamentos e textos nesse sentido não servem para a transmissão. A transmissão só existe de mestre para discípulo, de coração para coração, de mente para mente, sem a intermediação de palavras. No entanto, a transmissão é feita todo o tempo, também com ensinamentos. Mas se você se agarrar aos ensinamentos ou pensar que os ensinamentos, os textos, os livros, serão de real ajuda, eles podem até atrapalhar. Porque mergulhados nos textos e tentando entender com seu intelecto, com as ferramentas da linguagem uma coisa que é intransmissível pela linguagem ,você jamais poderá chegar ao reconhecimento direto que é exigido para o despertar.
Voltando à questão do eu. Nosso eu, então, pode ser expandido, e isso é uma coisa que nós tentamos com educação, com a conscientização e com o próprio Zen. Existem pessoas que têm um eu que é limitado à superfície de sua pele. Essas pessoas não se importam com nada que acontece com as outras ou com o mundo ao seu redor, por isso promovem destruição, porque o mundo de sua percepção termina na sua pele. Então essa pessoa joga lixo no chão, porque ela comeu e sobrou um papel, e a calçada não é ela, a cidade não é ela, os outros não são ela e não se importa com a perturbação de jogar lixo no chão. Não serve mais para mim, então, está fora da minha pele, jogo o papel no chão. Esse é um eu limitado a sua pele. Outras pessoas têm um eu limitado à superfície externa de seu automóvel, por isso jogam lixo pela janela do carro. Outras têm um eu limitado a sua casa e jogam lixo pela janela do edifício. Isso tudo é muito primitivo.
Os animais têm um senso de propriedade territorial, por isso, quando colocamos um cão numa casa ele defende aquele território, e isso também é muito primitivo dentro de nossa condição humana. Por isso também defendemos e cuidamos de um território que é nosso. Mas o território vai até o muro da casa, então jogamos o lixo por sobre o muro. Se a pessoa tem um pouco mais de consciência e está numa cidade, como por exemplo, em Porto Alegre, então ela cuida de Porto Alegre. Mas se está diante de um rio, porque o rio vai embora, então acha que pode jogar lixo nele Outras pessoas crêem que a noção de nação faz parte da identidade, e essa nação termina na linha imaginária de sua fronteira. Assim, o que está do outro lado é um inimigo e pode ser morto porque não faz parte de sua raça, de seu país.
Nesse passo, vejam quanto temos que andar apenas para compreender mais amplamente a nossa percepção de mundo de modo a que nossa percepção pudesse abranger mais: “eu não sou só eu, eu sou a humanidade, eu sou o planeta, eu sou muito mais”. Se eu tiver essa noção de eu expandido, dei um passo importante, que é a ampliação da consciência e a percepção de um absoluto. Mas alguns praticantes do Zen chegam a esse ponto através da meditação e sentem-se unos com a humanidade, unos com o universo e unos com o todo. O que vocês diriam que é isso? O que diriam que é essa percepção? Seria a iluminação? Ainda não. Essa consciência já foi e ainda é muito confundida por praticantes, porque ela é magnífica como a iluminação: “Cheguei à percepção de que sou um com o todo”. Mas porque não é a iluminação?