Por que o Dharma é raramente encontrado? Primeiro porque mesmo que existam muitas oportunidades de vida no universo, na Terra nós estimamos – mesmo que a ciência tenha dificuldades em estimar – que trinta bilhões de formas diferentes de vida já surgiram. Dessas formas de vida, 99,9% já se extinguiram e, desta forma, restam muito menos espécies do que já existiram em nosso planeta.
Esse não é um evento de agora, já tivemos várias extinções de vida na Terra. O primeiro grande momento de explosão de vida foi o período Cambriano, onde surgiram os “trilobites” e dos quais hoje não sobra nada. Das grandes florestas do período carbonífero também não restou nada. Já tivemos na Terra uma atmosfera redutora que não era baseada em oxigênio. Quando a Terra produziu muito oxigênio e a atmosfera começou a ter cada vez mais O2, este era um gás muito venenoso para as espécies anaeróbicas e extinguiu praticamente toda a vida no planeta. Tivemos a extinção do Período Cambriano, depois a extinção dos dinossauros e dos animais de grande porte. Os únicos animais que sobraram foram os muito pequenos que viviam em tocas e não foram afetados pelos meteoros que atingiram o planeta mudando seu clima. Dentre esses pequenos animais encontravam-se alguns mamíferos e desses descendem os mamíferos que hoje habitam o planeta.
Uma única espécie de hominídeo sobreviveu entre várias, com um cérebro melhor dotado, foi povoando o planeta. Então, desses trinta bilhões de espécies que já habitaram o planeta, uma única conseguiu desenvolver uma civilização. Ainda assim, é uma história muito recente de apenas dez mil anos, se contarmos a história da agricultura, frente aos quatro e meio bilhões de anos da Terra.
Os faraós morriam em média com trinta anos de idade. Nesse momento em que estamos, vivemos o dobro do que vivíamos em meados do século XX. E isso aconteceu dos anos quarenta pra cá, antes disso havia mais homens que mulheres porque as mulheres morriam no parto. Mas isso é para ilustrar que cada pessoa dessa sala é descendente direto de uma linhagem de vida que começa por volta de dois bilhões e meio de anos atrás. Somos descendentes daquele início de vida. Parece que a matéria inorgânica no universo tende a formar vida. O mais extraordinário é que cada um de nós pode traçar uma genealogia até um ser unicelular, até dois bilhões e meio de anos atrás. Pode ser que alguns de vocês não tenham descendentes e a linhagem morra com vocês.
Somos descendentes dos que ganharam guerras, cometeram crimes, estupraram e dos que fizeram com que seus genes fossem adiante. Não somos uma linhagem de pessoas boazinhas e sim daqueles que ganharam a batalha da sobrevivência. Não é de se admirar, portanto, que olhemos para dentro de nós e vejamos sentimentos agressivos e muitas coisas que vêm dessa linhagem herdada.
Tudo que foi dito é para chamar atenção para o fato de que, mesmo que exista vida em bilhões de mundos, é muito provável que existam mundos com vida estuante, mas sem que uma única espécie tenha desenvolvido a capacidade de criar civilização e que isto seja um acontecimento muito breve na história de um mundo ou universo e, mesmo assim, somos prodigiosos no sentido de nossa sobrevivência.
Devemos nos perguntar então, como surgiu a espiritualidade, como surgiram as perguntas “por quê estou aqui? Como surgiu minha consciência? Como é que desenvolvemos uma consciência tal que compreendeu sua finitude e se viu em um beco sem saída”? Os pássaros, os peixes, os micróbios, nossos corpos cheios de vida, não são nossas próprias células; mais da metade do nosso peso são de bactérias que coexistem simbioticamente e nos ajudam a sobreviver. Como aconteceu algo tão complicado, como cada célula tem um código de vida tão longo que estendido chegaria a dois metros? O que é isso que aconteceu conosco? O que é essa mente que pensa dentro de nós? Quem é esse que diz “eu sou”? Por que tememos uma morte que sabemos ser certa?
Os pássaros e os peixes não pensam nessa morte que para eles também é certa. Apenas vivem. Então, “os peixes são verdadeiramente peixes, os pássaros são verdadeiramente pássaros, só os homens não são verdadeiramente homens”. Existe algo dentro de nós que pensa fora disso, “não somos verdadeiramente seres humanos”. Algo dentro de nós deseja mais, por isso nos angustiamos com nossa finitude e queremos descobrir um sentido para nossa vida.
Buda teve o mesmo problema e ele sentou e meditou, para resolver esse problema. Mas ele resolveu de forma diferente de todos os outros que apresentaram à humanidade crenças e esperanças de sobrevivência eterna de seu “eu”. Ele descobriu que o “eu” construído por ele é que é a ilusão e libertar-se dessa ilusão, é voltar-se para a verdadeira natureza. O universo inteiro sou eu mesmo. Ele entendeu que essa expressão de vida que falamos aqui é mera manifestação, não é uma criação. Somos fagulhas do universo. Não temos como sair do universo, estamos sujeitos a nascimento e morte, aliás, essa ilusão de um “eu” pessoal é que está presa a nascimento e morte. Tão logo passo a pensar, eu penso: “eu sou”, e esse “eu sou” sabe que é função desse corpo e desse cérebro e por isso surge e desaparece, essa é a tragédia do homem, essa consciência do “eu sou”.
A iluminação da qual Buda falou, é libertar-se completamente do “eu sou” e voltar a perceber-se como o todo abrangente, o grande ser que está além desta manifestação pessoal. Esse grande ser que nós e todos os outros seres somos, não está sujeito a nascimento e morte. Embora seja cíclico, surja e desapareça, ele é a própria vacuidade e dele surgem todas as coisas, não é um algo do qual surgem todas as coisas, mas é a própria natureza de todas as coisas e todos os seres. Serem vazios de um “eu” inerente.