Pergunta – O senhor antes disse que morremos sozinhos, que não existem indivíduos e que o “eu” é uma ilusão, são os carmas que formam as identidades. Quando alguém morre o que acontece com essa identidade? Do que adianta uma pessoa desejar ser melhor se depois ela volta, como uma gota, para o oceano e não será ela quem sofrerá as consequências de seus atos? Como no caso dos espíritas…
Monge Genshô – Veja bem, cada pessoa que nasce, na crença espírita, tem um “eu” novo. Ele herda as consequências de um espírito anterior mas em um corpo novo e nesse processo ele não se lembra de nada. Quem carrega as consequências é um novo ser…
Pergunta – Mas no budismo existe esse ser?
Monge Genshô – No budismo há a continuidade do carma, mas o “eu” está perdido, pois ele depende de memória. O que constitui a noção de um “eu” é a memoria, tanto que se você sofre um acidente, fica com amnésia e se lhe pergunto quem é você, sua resposta será: “não sei”. Ignorando a questão da crença em espíritos ou coisas assim, não vejo tanta diferença. Mesmo que no espiritismo você diga que existe um espírito que carregou o carma, o “eu” de cada vida é diferente. O grande problema deste tipo de crença é, por exemplo, como li outro dia, a pessoa dizer que na vida passada foi “Rei Ricardo Coração de Leão”. Isso é muito interessante, as pessoas sempre foram reis, rainhas, grandes líderes, grandes guerreiros, não existem escravos, ladrões, prostitutas. O budismo não se dedica a dar explicações sobre o que acontece, para nós o que é óbvio é que não existe efeito sem causa. Tudo que existe hoje tem uma causa pregressa, logo, de certa maneira você é responsável pela sua vida atual, pois tudo que você carrega, suas características foram construídas. Quando você morrer, tudo que acontecerá depois virá do que você fez nesta vida.
Pergunta – E o que acontece com esse “eu” que morre?
Monge Genshô – Não sei, ainda estou vivo. O budismo não se dedica a dar esse tipo de explicação. Se formos especular, encontraremos muitas teorias. Por exemplo, no budismo Tibetano há o “Livro Tibetano dos Mortos” onde há uma descrição detalhada do processo pós morte, também há algo assim no budismo japonês. Mas isso tudo não é verificável e o budismo não discute coisas não verificáveis. Para nós o que basta é que todas os efeitos têm causa e o que você faz agora tem efeito no futuro. Sua outra pergunta, “Por que alguém deve fazer algo de bom se depois ele mesmo não continua?”. Veja bem, uma pessoa vai dirigindo o carro por uma cidade e joga lixo pela janela. Ela faz isso pela razão de que não voltará para a cidade, está apenas de passagem e não se importa. É como se para fazer boas coisas fosse necessário boas recompensas, pagamento de prêmios e reconhecimento. Então essa pergunta não se sustenta, você precisa de bons atos para gerar bom carma mesmo que não seja para você e sim para o mundo e para os que vem depois.
A arte do bonsai representa isso, você cultiva uma árvore e ela pode viver trezentos ou quatrocentos anos. Se formos ter a mesma perspectiva de sua pergunta, para quê cultivaríamos um bonsai do qual nunca veremos o resultado? O objetivo é fazer algo belo mesmo que eu nunca vá ver o final. O Pau Brasil é uma árvore da qual se fazem arcos de violino, violoncelos e contrabaixos. É a melhor madeira para isso. Mas o Pau Brasil está quase extinto e existem projetos de reflorestamento, mas então você vai chegar para o produtor e perguntar porquê ele está plantando Pau Brasil, que demora décadas para crescer, se não verá a árvore chegar ao ponto de ser cortada para virar arcos de instrumentos musicais? Como agora não existe Pau Brasil, os arcos estão sendo feitos de alumínio ou fibra de carbono, isso é trágico e acontece porque todo tempo as pessoas pensaram que não valia a pena, pois não veriam o resultado. Isso acontece em várias áreas do planeta, alguns peixes estão extintos, pois o oceano tem uma capacidade limitada de auto reposição e deveria ser permitida a pesca de uma quantidade determinada sob pena de extinguir várias espécies para o futuro.
Pergunta – Mas aquele viajante que disse que não voltará para cidade, não o fará nesta vida, mas em outra sofrerá as consequências de seus atos.
Monge Genshô – Exato. Porém o correto seria não fazer isso mesmo que eu não voltasse para este mundo. Não por causa das consequências que eu sofrerei, pois eu e os outros somos a mesma coisa.