Se consideramos que nossa noção de um eu é construída por uma operação mental que ocorre dentro desse corpo, então essa operação mental produz uma ilusão de consciência própria. Essa ilusão de consciência própria é o que nós chamamos de “eu”. Nós dizemos: “eu sou”. Nós temos nome, temos forma e pensamos: “eu existo e eu sou um ser separado”. O que Buda declara é que essa noção leva em si mesma um engano, que é provocado por essas sensações. Tenho percepções, formações mentais, e daí surge a consciência. Não passam de agregados e funcionamentos de um corpo. Quando esse corpo cessa, essa noção de eu cessa.
Meu telefone celular também é constituído de matérias complexas: temos metais, temos plásticos, temos uma porção de circuitos integrados. Mas, se essas matérias estiverem desorganizadas, não são mais um celular, desapareceu o celular. Nos textos antigos, Nagasena faz essa comparação no Milindapada com um carro, um carro de bois: se eu tirar as rodas, tirar pedaços e desconstruir o carro, onde ele está? O carro não está mais ali. Ele só é carro quando junto suas partes daquela forma organizada. Então, se eu tenho um plano de fazer um carro e junto daquela forma, com o eixo de um jeito, as rodas colocadas com exatidão, com a caçamba, etc., eu tenho um carro. Senão eu não tenho um carro.
O carro é uma construção, uma organização, dentro do mundo e, por si mesma, temporária. E essa construção só é carro para nós que a olhamos como carro. Isso faz surgir um outro conceito: esses objetos surgem coemergentemente ao observador. Para que exista um carro, é necessário que exista um homem que olhe para o carro e diga: “carro”. Senão, aquela organização não é evidentemente um carro; ela só é um carro para um homem. Para uma colônia de cupins não passa de um amontoado de madeira digerível. E, portanto, um monte de comida não é um carro. Um carro só o é para esse observador que o interpreta como um carro, senão não é carro.
Nós também só somos seres com o “eu” porque somos capazes de perceber esta identidade através da nossa operação mental. Então nós temos que fazer uma autorreferência, que começa com a nossa mãe quando ela diz: “você é fulano”. Você tem um nome, e esse nome começa a agregar seus conceitos de ser.